Demorou um tempo pra eu conseguir gostar de domingos, no passado eram dias de finais complexos. Depois de anos fui, artesanalmente, transformando eles em lentidão – um dia onde tento que o tempo caminhe e não passe rápido demais sem que eu consiga olhar ele de frente.
No café da manhã de domingo é onde mais tento essa relação gentil com meu tempo – vários preparos, detalhes, nada tão rápido nem nada tão prático – as receitas que ficam prontas em 5 minutos e são consumidas em mais apenas 5 não são para hoje. E mesmo que a receita seja simples (como foi a tapioca e o creme de abacate de hoje) eu demoro mais de propósito. Eu paro pra escolher músicas, às vezes pra dançar, às vezes pra olhar a janela da lavanderia um tempo, pra passar a mão no meu cachorro, pra ajeitar meu vaso de flores, pra tentar registrar meu tempo sem que ele escorra pelas minhas mãos nessa modernidade líquida.
Como qualquer metropolitano sobrecarregado, mesmo nos domingos onde fico tentando sentir o sabor sagrado da lentidão, a pressa e os cálculos das demandas de segunda-feira me atravessam, às vezes cortando com faca cega o tecido do meu tempo calmo – mas aí eu vou tentando voltar, porque afinal de contas, eu esqueço às vezes, mas uma coisa eu aprendi: não adianta muita coisa estar vivo para correr/produzir/calcular/entregar se eu não puder de vez em quando olhar em paz pra minha toalha listrada de mesa e perceber o quanto eu gosto dela, notar que amo deitar no chão da cozinha pro meu cachorro subir em mim, sentir o gosto na boca e lembrar que banana e queijo na tapioca nunca perderá o encanto, ter tempo de pensar que a textura de um creme de abacate é uma obra prima da natureza, que a pitaya é uma coisa misteriosa e bonita demais, que o papo furado das manhãs de domingo com o grande amor da minha vida são a coisa mais aconchegante dos meus dias. Espero que eu possa, na maioria das vezes, me lembrar do que Antônio Candido disse:
“Dizem que tempo é dinheiro, mas isso é uma monstruosidade. O tempo é o tecido de nossas vidas”.
O fabuloso destino dos legumes quase estragados, esquecidos nos cantos marginais da geladeira. Todo potencial guardado se revela diante de uma chance de brilho – pensei, e cortei em pedaços: batata doce, cenoura, chuchu e abobrinha.
1) As batatas e as cenouras tem tempos parecidos. Seus pedaços vão juntos na mesma panela com água fria, e então vão ferver até cozinharem, mas não muito, precisam ficar firmes.
2) Já o chuchu tem um tempo diferente e vai em uma panela e água só dele – a gente precisa respeitar o tempo pessoal de cada legume, ou pessoa, caso contrário não teremos chance de ver seu brilho autêntico. Descasco ele, coloco na água fria e levo pra ferver pra cozinhar um pouco, mas também ficar firme.
Escorra tudo, após cozinhar.
3) Em uma frigideira ou panela grande coloque manteiga e os legumes (não muitos de uma vez). Junte a abobrinha (que entra só agora também em respeito ao seu tempo singular). Coloque um pouco de saquê e shoyu.
4) Em fogo médio para alto, doure. Mexa se for preciso para que toda peça fique em contato com o fundo da frigideira em algum momento – e isso é sobre todos terem espaço para conquistar um tipo de brilho.
Pronto. 1) Num canto esquecido, nas margens da geladeira, foram vistos com um olhar de valor. 2) Depois tiveram seu tempo respeitado. 3) Foram oferecidos alguns recursos (manteiga, saquê, shoyu). 4) Foi concedido espaço. Puderam então, brilhar.
Meu jeito preferido de comer legumes.
Take these broken wings and learn to fly All your life
O que você aprende quando cozinha em casa, de vez em quando, ao invés de comprar sempre pronto? Cozinhar é um convite para frear a dinâmica violenta e veloz do nosso cotidiano e experimentar uma relação diferente com nosso tempo. Quando você para um pouco de se render as sedutoras ofertas de comida pronta e passa a cumprir todo o processo de preparar uma refeição para só depois ter algo pronto para comer, algumas coisas começam a mudar. Além de hábitos mais saudáveis, cozinhar com mais frequência me proporcionou um contato com minhas aspirações pessoais, sentimentos de autorealização e com uma via terapêutica – isso mesmo, cozinhar nos transforma – fazer artesanalmente, com as próprias mãos, ao invés de comprar pronto é libertador e permite a inauguração de possibilidades mais criativas. Bom, preciso falar sobre algumas coisas para que vocês me acompanhem.
Hoje vivemos num mundo onde a indústria alimentícia, restaurantes e redes de fast-food nos oferecem comida pronta, rápida e barata, nos “poupando” do trabalho de cozinhar. Há anos a relação do homem com a comida se transformou, e hoje cozinhar é um serviço amplamente terceirizado, e para que? Para que tenhamos tempo de trabalhar mais e produzir o “capital”. O tempo livre é pouco e pode ser difícil querer usá-lo para cozinhar – esse ato ao longo dos anos foi sendo pejorativamente caracterizado como “muito trabalhoso”. Criou-se o discurso “se puder evitar o trabalho de fazer e puder comprar pronto, melhor”. Trabalhamos tanto que cozinhar soa como mais trabalho, e quando estamos em casa não queremos assumir a posição de “trabalho-produção”, mas sim de “lazer-consumo”, então dedicamos o nosso tempo livre ao que indica lazer e relaxamento, cozinhar é um “trabalho” que passaram a fazer por nós. Apesar de nos últimos 3 anos as pessoas estarem se reaproximando da cozinha, ainda há uma grande alienação e distância entre nós e os pratos que consumimos. Ainda nos nutrimos de coisas que não temos a menor ideia do que as compõe e quais processos aconteceram para que elas se tornassem nossa refeição.
Cozinhar é um exemplo, mas existem diversas outras experiências que abrimos mão de ter no nosso cotidiano, coisas que não permitimos mais viver e, quando podemos, pagamos para que façam por nós. Terceirizamos a educação dos nossos filhos contratando instituições ou funcionários para cuidar deles por períodos integrais, terceirizamos também os momentos recreativos com eles dando brinquedos, celulares e videogames sem construir muitas atividades nas quais todos estejam juntos e implicados em um “encontro”. Terceirizamos o cuidado do nosso lar, das nossas roupas, do nosso jardim, das nossas contas, e por aí vai, são muitos os aspectos de nossa sobrevivência que estão nas mãos de indústrias e prestadores de serviço. Considerando nossa cansativa rotina, poupamos o trabalho que pudermos poupar, sem perceber que ao mesmo tempo nos esquivamos da chance de ter alguns “trabalhos” de outra ordem, aqueles que produzem aprendizagem, autonomia, crescimento emocional, maior implicação com nossa existência e a construção de experiências – Emprego aqui o termo “experiência” pensando no trabalho da psicanalista Maria Rita Kehl, que em seu livro “O tempo e o cão – a atualidade das depressões” aborda nossa dificuldade de construir experiências significativas, o que acaba empobrecendo nossa vida psíquica e a capacidade de enxergar sentido nas coisas.
Em nossos empregos (aqueles que nos tiram todo o tempo) muitas vezes assumimos a ideia de que trabalho e esforço devem produzir dinheiro (só dinheiro), não nos permitimos mais enxergar que trabalho e esforço também podem produzir “experiência”, produzir marcas emocionais boas e aprendizagem – a ação humana é capaz de construir mais que apenas valor capital. A real é que talvez estejamos famintos por outros tipos de produções que podemos construir com nosso tempo. Precisamos nos propor “trabalhos” que produzam sensações que nos nutram emocionalmente – seja transformando o modo como consideramos nossos empregos e tentando enxergar o que nossa prática profissional produz além de salário, ou adotando atividades alternativas em nossa rotina . Porque a real é que produzir apenas dinheiro tem se mostrado pouco e vazio (o número de pessoas com vazios existenciais tem crescido, a depressão no nosso tempo também é um alarme sobre a dinâmica social que assumimos).
O singelo ato de cozinhar em casa nos ajuda a encontrar essa outra possibilidade de produção, que não é de dinheiro, mas sim de sensações boas que se tornarão “experiências” que registraremos em nosso emocional – produzir um simples prato pode trazer mais do que imaginamos, precisamos só parar para notar o que sentimos quando o fazemos – sentir, notar, registrar. Esse processo, que ocorre através de atividades manuais, nos reaproxima de sutilezas esquecidas, massacradas pelo mundo violento e apressado, onde tempo é só dinheiro.
Obviamente não podemos fazer tudo sozinhos, temos muitas vezes que contratar serviços e instituições para nos ajudar a dar conta de todas as demandas da vida, seria impossível talvez cozinhar todos os dias ou cuidar de todas suas tarefas domésticas, dependendo de sua rotina. Podemos contar com ajuda, podemos ser eventualmente espectadores e apreciadores de algo que fazem para nós, ir aos restaurantes que apreciamos, pedir comidas que gostamos, comprar serviços e produtos que admiramos – isso tudo é super importante e saudável, não estamos falando de uma ideia exagerada de autonomia, porque isso seria uma bobagem. O problema é não fazer nunca – fazer você mesmo de vez em quando já muda muito. É o excesso de terceirização que nos priva da chance de contatos riquíssimos. Consumimos o pronto em demasia e estamos distantes demais do “fazer as coisas”. Cozinhar ao invés de comprar pronto é atuar no processo, é implicar-se no “fazer”, é transformar o ingrediente e criar algo com ele, para só depois consumir – temos pulado tudo isso e partido direto para o consumo do pronto – o que perdemos com isso?
Perdemos contato com o que comemos ao ponto de não ter a menor ideia de seu valor nutricional, o que é muito grave e causa uma série de danos à saúde. Porém, me atentarei aqui ao prejuízo emocional e psíquico que parar de cozinhar nos trouxe. É no fazer das coisas que aprendemos, elaboramos, mantemos tradições culturais vivas, construímos experiências e no final podemos ver uma obra nossa e nos sentir potentes, criativos, inspirados e realizados por nossos feitos – pelo que fazemos com nossas mãos. Agora quando não fazemos nada disso e só consumimos o pronto, o que fica com a gente quando a comida acaba? O que de experiência significativa ficou? Quase nada, e aí que entra os tantos vazios que enfrentamos hoje – lembrando que meu foco é sobre o ato de cozinhar, mas essa reflexão pode se estender para várias outras coisas que compramos prontas ou pagamos para fazerem para nós.
Cozinhar em casa hoje é um grande desafio, as ofertas de tudo pronto são muito sedutoras, dão a sensação de libertação – “compre pronto e tenha mais tempo” – aliás, é exatamente nesse tom de libertação que a indústria alimentícia começa a ganhar força, quando ela aproveitou o discurso feminista que crescia na década de 50 para plantar a ideia de que estava ajudando a libertar as mulheres da tarefa de cozinhar, para que elas pudessem ter tempo de fazer o que quisessem. No livro “Cozinhar – Uma história natural da transformação”, Michael Pollan faz uma interessante reflexão sobre fatores sócio-históricos que ajudaram a construir o modo como hoje nos alimentamos. Pollan nos conta que a indústria de alimentos processados e industrializados desenvolveu-se em grande escala no período das grandes guerras, pois era a única alimentação possível aos soldados – não era possível cozinhar comida fresca nos campos de guerra, então esse nicho de mercado era muito funcional para tal situação. Mas aconteceu que as guerras terminaram, e a indústria alimentícia tinha então um problema: Para quem vamos vender agora? Tiveram então que levar seus produtos para dentro das casas da população comum, e aí que tudo começa. A propaganda era pesada e muito persuasiva, sempre colocando a comida industrial e pronta como algo incrível e libertador. Redes de fast-food nos Estados Unidos explodem e iniciam consolidação quando a febre da “comida pronta e prática” começa a surgir, e todos passaram a cozinhar cada vez menos.
Então pensamos: Mas então a indústria alimentícia ajudou nessa ferida histórica ao “libertar as mulheres” e fornecer a chance delas fazerem o que quisessem com seu tempo sem precisar cozinhar mais! Isso não é ótimo? Bom, não é bem assim. Pollan também traz dados muito interessantes sobre o feminismo e sua relação com a questão da indústria alimentícia. Claro que de alguma forma ter outra maneira de alimentar a família pode ter contribuído com a saída da mulher da opressão do lar para ganhar terrenos novos, porém a história tem alguns outros lados. A verdade é que os alimentos processados começam a entrar na casa das pessoas antes mesmo da mulher sair da cozinha – e de casa – para trabalhar fora. A oferta industrial era tão agressiva que ainda quando havia tempo para continuar cozinhando comida fresca as pessoas já começaram a consumir comida industrial. E uma pergunta importantíssima: quando a mulher para de se dedicar apenas ao lar e sai para trabalhar fora, porque é que foi a indústria que teve que cozinhar para a família? O problema se estende ao fato de que ao invés de homens e mulheres resolverem o problema com uma nova configuração de funções, pensando numa possibilidade de as tarefas de casa (entre elas, cozinhar) ser divida entre os dois, eles decidem deixar que a indústria fizesse para eles. De certa forma perde-se a chance de questionar valores e dar um novo rumo às demandas domésticas, repensando o papel do homem e da mulher na sociedade. Ao invés disso vemos a continuidade de um posicionamento machista, pois o cenário foi: Se a mulher não pode mais cozinhar, então ninguém pode. Mantém-se assim a ideia de que apenas a mulher poderia cozinhar, o homem continua fora do cenário doméstico. – ao invés de uma perspectiva ser transformada ela é varrida para debaixo do tapete com a solução “perfeita” da indústria, que obviamente era também a consolidação de um grande nicho econômico que produziria muito lucro. A indústria alimentícia se aliou ao elemento feminista para fortalecer seu discurso de venda e dizer que estava libertando as mulheres, mas no discurso oculto de suas propagandas ela continuava a reforçar a ideia de que em casa apenas a mulher podia cozinhar, fazendo assim a manutenção de um discurso opressor. Nada muda muito, afinal.
Ainda vale ressaltar que, dentro das questões do feminismo, cozinhar não era exatamente um ponto central no cenário doméstico opressor em que a mulher se via. Outras tarefas domésticas se mostravam mais estafantes do que cozinhar, que sempre teve um tom diferente de outros trabalhos domésticos por ser um ato também relacionado à arte, criação, revelação e prazer. Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo” diferencia o ato de cozinhar de outras demandas domésticas, justamente por ser um ato que dava ao humano a possibilidade de “criação e revelação” – claro que há um tom bem francês em tal perspectiva, mas ela nos faz notar o quanto talvez deixamos de cozinhar em casa não porque as pessoas odiassem tanto isso, mas sim porque um nicho econômico precisava que víssemos assim, e vendeu essa imagem para depois poder nos vender sua comida.
Depois de pensar um pouco em alguns elementos históricos que nos afastaram da cozinha, te pergunto: Porque eu deveria cozinhar? Porque tenho me focado justamente nessa ação?
Porque ela é implicar-se com a ação mais antiga e importante para nossa sobrevivência, que impacta nossa saúde, explora a relação do homem com a natureza e é ironicamente a que mais terceirizamos hoje. A ideia é retornar a uma possibilidade artesanal de alimentar-se, de viver – artesanal é o que é feito por nossas mãos. Cozinhar é pegar ingredientes crus, combiná-los e transformá-los em refeição – esquentar a pizza congelada no forno não é cozinhar, como muitos hoje acham (essa coisa de semi-pronto talvez seja só para nos plantar a ilusão de que estamos cozinhando e acalentar um pouco o mal estar de “nunca fazer”). Ao cozinhar nos apropriamos de um trabalho, conhecemos o ingrediente e o modo como a natureza nos oferece as coisas, atuamos em um processo e aprendemos. Saímos da ação automática de consumir o pronto e entramos em contato com a essência de algo. Quando nos notamos construindo e criando coisas algo muda dentro de nós, nasce uma experiência transformadora, delicada e subjetiva, que alimenta de alguma forma nossa satisfação pessoal, e consequentemente nossa saúde emocional. Quando cozinhamos aprendemos a lidar com o ingrediente, entramos em contato com a natureza que fazemos parte e criamos uma obra, então cozinhar se torna mais do que um ato corriqueiro para matar a fome do corpo, matamos uma fome de experiências significativas e transformadoras – Afinal, “a gente não quer só comida”, não é mesmo?
Pode soar estranho, mas acho que faz todo sentido relacionar o ato de cozinhar em casa com um processo psicoterapêutico (não dizendo que são a mesma coisa, que um possa substituir o outro ou algo assim, me refiro ao ato de cozinhar como uma metáfora que explica alguns elementos do processo psicoterapêutico). Na terapia, grosso modo, “deitamos no divã”* para entrar em contato com nosso funcionamento emocional e compreendê-lo, saindo do automático e podendo transformar nosso modo de construir experiências e viver. O trabalho da terapia é buscar uma apropriação do funcionamento de algo (do nosso psiquismo, no caso) para poder agir com mais autonomia e criatividade, quem sabe, reescolher o modo como tenho experimentado a vida. Claramente posso ver essa situação no ato de cozinhar – que na real, também é mergulhar no contato com um processo muitas vezes oculto a nós, apropriar-se de algo que hoje nos é misterioso, que normalmente fazem por nós e nem sabemos como funciona, e dessa forma compreender um processo, conseguir conhecer ingredientes, transformá-los e criar algo com eles, nos tornando mais autônomos e autores. Cozinhar dá trabalho e leva tempo, às vezes incomoda e não soa tão confortável ou simples. Uma psicoterapia pessoal dá trabalho e leva tempo, às vezes incomoda e não soa tão confortável ou simples. Porém ambos podem construir possibilidades mais próprias, autorais, criativas, reveladoras e menos alienadas, no qual nos implicamos mais com as coisas de nossa vida e podemos assim extrair dela experiências significativas.
Cozinhar pode ser um desafio. Escolher onde comprar ingredientes frescos, como conservá-los, usá-los no prazo adequado, evitar contaminações e mau uso dos produtos, ter ideias do que fazer, aprender a usar as coisas – sim, é trabalhoso, mas cada parte desse processo nos aproxima de coisas valiosas sobre o mundo natural, sobre as relações em torno do ato social que é alimentar-se, sobre nosso modo de lidar com as coisas, sobre quem somos.
Há cerca de 5 anos desenvolvi um projeto – um blog – chamado “Quando a cozinha é um Divã”. Inicialmente era uma forma de registrar minhas experiências com a cozinha, sempre a vinculando com aspectos emocionais. Hoje o blog é uma referência quando se trata de pensar no ato de cozinhar como algo que nos movimenta emocionalmente e socialmente. Como podemos nos sentir incríveis, inteiros e potentes cozinhando? A ideia por trás do blog me ajudou a resgatar coisas importantes que o mundo em que “tempo é dinheiro” estava me fazendo esquecer – eu “parei” esse tempo para cozinhar. O blog hoje busca expandir a ideia que esse artigo apresenta, ampliando o modo como as pessoas se relacionam com sua alimentação, e consequentemente com suas vidas.
Há hoje em dia muita gente também questionando a maneira como nos alimentamos. Temos o movimento Slow-food, que se contrapõe ao fast-food e resgata o valor da lentidão. Temos também o exemplo do trabalho delicado de reencontro a natureza que muitos chefs e instituições pregam, como exemplo: A chef Paola Carosella em suas falas e trabalhos nos propõe a explorar e repensar nosso encontro com o natural do mundo, questionando a relação que temos com esse natural, como o aproveitamos e respeitamos. Outro exemplo que nos inspira a transformar a ideia que temos sobre cozinhar: A empolgante e divertida Raíza Costa, confeiteira e criadora de conteúdo digital, se dedica a ensinar pessoas a cozinhar. Só isso? Não. Raíza apresenta suas receitas e ensinamentos de uma forma revolucionária por dois motivos: Primeiro porque ela é cativante e divertidíssima no seu trabalho, e isso muito mais do que entretenimento torna o convite de cozinhar em casa muito mais interessante, resgatando um valor de prazer e alegria em volta do ato de cozinhar – aquilo que como vimos acima, os interesses econômicos do mundo industrial nos fez perder. E outro elemento interessantíssimo é o modo como ela incentiva o trabalho artesanal, nos ensinando a fazer em casa inúmeros preparos que normalmente compramos pronto, explicando processos químicos que ocorrem nas receitas, como controlar esses processos e como valorizar aquilo que você coloca no que vai comer – uma tomada de consciência total. Raíza planta em seu trabalho toda ideia de reencontro com o artesanal e com a autonomia que tenho falado, o que torna seu trabalho um serviço social diante do mal estar da industrialização que vivemos.
Ao cozinhar transformamos algo em nós para depois transformar outras experiências na vida. Considero que o hábito de cozinhar faz nascer algo que não se encerra na cozinha, pois ele possibilita a chance de apropriação de outras coisas. É como um desejo que nasce de fazer mais com nossas mãos, de criar mais marcas – quando notamos o valor de uma prática a levamos a diante de diversos modos, é um certo gosto que adquirimos por não deixar mais que façam sempre algo por nós, mas que façamos um pouco desse algo com nossas mãos de vez em quando – para aprender, apropriar-se, crescer e criar. Cozinhar é um agente transformador que nos convida a repensar muitas práticas – inclusive sobre como temos encarado nossos empregos, os trabalhos formais, repensando o modo como conferimos à eles a função de produzir só dinheiro – o que mais nossas práticas produzem? Quais marcas criamos ou podemos criar todos os dias, também no “horário comercial”?).
Cozinhar é revolucionário, eu acho. É um modo de sair da condenação que o esquema econômico nos impõe, de dizer um pouco de não aos duros imperativos de consumo e alienação, é rebelar-se diante da falta de vivências significativas. Cozinhar, além de nos aproximar do que comemos e melhorar a qualidade da nossa saúde tem um forte fator emocional, se torna uma possibilidade de autoria que pode ganhar proporções sensacionais, abrindo novas reflexões sobre o modo como temos vivido e mantido certas práticas. Nos faz questionar nosso distanciamento das coisas simples e importantes, do mundo, da natureza e das pessoas que amamos. Cozinhar se torna um contato mais artesanal com a própria vida, se torna uma ação simbólica que amplia o modo como tenho feito a minha obra psíquica e me relacionado com o mundo. Cozinhar é também valorizar o tempo de uma forma diferente – tempo é muito mais que dinheiro. Cozinhar é, por fim, reencontrar o artesanal – o feito com a mão, e não na produção em massa – e o mais humano que nos compõe, vendo possibilidades mais criativas, singulares, reveladoras e emocionantes.
*O divã é uma ferramenta usada pelo psicólogo ou psicanalista para psicoterapia ou análise, mas claro, não é o único meio de uma psicoterapia acontecer. Destaquei e usei o termo para fazer alusão ao nome do meu blog – “Quando a cozinha é um divã” – e também porque na minha prática e abordagem enquanto psicólogo, quando atuo em consultório, o divã é ferramenta presente.
Referências bibliográficas:
POLLAN, M. Cozinhar: uma história natural da transformação; tradução Cláudio Figueiredo. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.
DE BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo; tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
Como fazer brioche french toast (também chamada de rabanada ou pain perdu) – Uma poesia à base de manteiga que ajuda a gente a caramelizar tardes cinzas sofridas, nessa vida às vezes legal, às vezes esquisita
Abaixo receita escrita, mas no Youtube tem um video com todo passo a passo completo. Lá mostro inclusivo como fazer a casquinha brûlèe caramelizada por cima mesmo sem maçarico:
Numa tarde chata qualquer misture 1 ovo com 1 xícara de chá de leite, 2 colheres de sopa de açúcar e algum perfume de baunilha. Bata bem. Pegue uma fatia de brioche, fure com um garfo e encharque todinha nesse creme que fez. Com gentileza, leve a fatia encharcada para uma frigideira quente com manteiga e frite dos dois lados até dourar (uns 2 min de cada lado). Preste atenção no cheiro da manteiga fritando o brioche – se você não parou para prestar atenção nos cheiros e detalhes, você ainda não entendeu bem a receita – que é sobre a felicidade discreta, escondida na simplicidade do cotidiano, e na manteiga. Assim já fica pronto e suficientemente bom, mas se quiser mais emoção e tiver um maçarico, coloque uma camada de açúcar por cima e toste, sem timidez, até caramelizar bem – eu amo incendiar coisas, me anima muito (tem a ver com mapa astral e com Paola Carosella). Sirva com iogurte, frutas, sorvete ou nada. Aqui servi do meu jeito preferido, com coalhada.
Queime brioches para caramelizações intensas e lindas, não queime as tardes vazias. Não sempre, eu sei, mas às vezes a gente só precisa de 4 ou 5 ingredientes, e as coisas melhoram um pouco. Não é apenas sobre uma rabanada, mas sim sobre o quanto você se propõe. Abraços amanteigados. Essa receita agradeço à Paola Carosella e Julia Child (pessoas que sabem o poder que a cozinha tem em tardes cinzas).
Receita simples para um bolo de cenoura clássico fofinho! Te ensino o segredo para uma massa super macia e fofa e também uma cobertura cremosa brilhante para coroar seu bolinho! E claro, como sempre por aqui, essa receita também tem um convite para uma experiência emocional gostosa, e dessa vez te chamo para notar a poesia e felicidade discreta, que está escondida na simplicidade do seu cotidiano, só esperando para ser notada por você – e o bolo de cenoura pode te ajudar nisso! Vem comigo entender “Quando a cozinha é um divã”! Clique no vídeo e confira!
Existem tantas receitas dessa por aí que na verdade não sei se vocês precisam de mais uma. Mas aí lembrei da história que essa tem e então achei que fazia sentido compartilhar – porque com a história junto, eu convido vocês a escrever também uma história quando forem cozinhar. Assim tem mais sentido.
Ingredientes:
500g de milho branco para canjica
2 conchas da água do cozimento do milho
1 lata de leite condensado
900 ml de leite integral
300 ml de leite de coco
2 paus de canela
Cravo da Índia à gosto
1 xícara de chá de coco fresco ralado
1 xícara de chá de amendoim tostado sem pele (opcional)
Preparo histórico e afetivo:
Era uns 9 anos que eu tinha. Sempre amava quando minha mãe ia cozinhar coisas que o processo começa 1 dia antes – eu adorava a sensação de ir dormir sabendo que já tinha algo que começou a ser feito lá na cozinha. Minha mãe colocava 500g de milho branco para canjica de molho na noite anterior ao preparo. No dia seguinte, com o sol já baixo das 17h batendo na pia, ela escorria a água do milho, lavava, depois colocava na panela de pressão cobrindo eles com água uns 3 dedos de altura. Cozinhava na pressão por 30 minutos. Na hora de abrir a panela eu ia sempre colocar a cara em cima e ela gritava pra eu sair dali que podia explodir tudo, mas eu adorava correr esse perigo. Estando o milho cozido, a água do cozimento é quase toda descartada, deixando ali apenas 2 conchas dessa água. Aí junta na panela: 1 lata de leite condensado, 900ml de leite integral, 300ml de leite de coco, 2 paus de canela, uns cravinhos da Índia e 1 xícara de chá de coco fresco ralado. A panela ia pro fogo médio até ficar tudo cremoso. Às vezes juntávamos 1 xícara de chá de amendoim tostado sem pele uns 5 minutos antes de desligar a panela. Daí perto da hora da novela das 20h que na verdade começava as 21h, eu ia no bar do Zé com 50 centavos comprar paçoca pra esfarelar em cima na hora de comer – era minha finalização do prato e eu me sentia um artista nessa hora. A gente comia no sofá vendo a novela e no dia de canjica nem janta tinha, era disso que toda a noite era feita.
Torta cremosa de chocolate amargo com flores. Não importa o quanto um dia tenha sido ruim, se eu chego em casa e posso fazer uma torta de chocolate, vou encontrar conforto e paz. Talvez isso possa soar pra você um jeito infantil de lidar com a complexidade da vida, mas pra mim é um jeito legítimo de conferir sentido às coisas. A torta é de chocolate amargo – porque nem sempre tudo é só doce, e precisamos lidar com isso. Mas na real, o amargo faz parte, e se notamos o sentido que ele tem, ele se torna bom, aprendemos com ele e ganhamos a chance de um gosto único. Na vida e nas sobremesas, doce demais enjoa e perde a graça, mascara os outros sabores e nos deixa distante do real gosto que as coisas tem, em seus tons doces e amargos. Fico pensando que as flores comestíveis por cima não são apenas porque dão um perfume bom ao chocolate, mas sim para coroar a torta, com toda delicadeza e gratidão que eu puder, porque a torta de chocolate amargo é simbólica, é sobre lidar com o amargo e doce possível ao nosso redor, juntar tudo e fazer uma obra boa. A vida é boa quando é uma torta de chocolate amargo equilibrada. Vamos a receita.
Ingredientes:
220g de biscoito de maizena
Uma pitada de sal
90g de manteiga derretida (talvez um pouco mais)
5 gemas
50g de açúcar
1 colher e meia de sopa de cacau em pó
300 ml de leite
50g de creme de leite
1 colher de sopa de extrato de baunilha
270g de chocolate amargo picado (uso 63%)
1 colher de sopa de licor de laranja (opcional)
Modo de preparo:
No silêncio de sua cozinha, respire fundo e triture (no processador ou liquidificador) cerca de 220g de biscoito de maizena – triture junto com o biscoito alguma raiva que passou no dia. Sinta ela. Coloque essa farofa em uma tigela e acrescente 1 pitada de sal e 90g (talvez precise mais) de manteiga derretida e misture, veja o ponto: você precisa que a farofa pegue uma leve liga. Coloque a massa em uma fôrma de aro removível e forre todo o fundo e pelo menos 2 ou 3 cm das laterais. Pressione bem com os dedos, para fixar. Asse em forno pré-aquecido à 190 graus por 10 minutos (não deixe dourar muito). Tire e observe: a massa é como a raiva – se você tritura, sente e depois modela direito, algo bom vem. Reserve.
Agora quebre o silêncio. Coloque pra tocar “Amor” dos Secos e Molhados – eu acredito na força reparadora da voz de Ney Matogrosso – e faça o recheio: Em um bowl, misture 5 gemas com 50g de açúcar e 1 colher e meia de sopa de cacau em pó. Aqueça em uma panela 300ml de leite, 50g de creme de leite e 1 colher de sopa de extrato de baunilha, até quase ferver. Despeje essa mistura aos poucos sobre a mistura de gemas, mexendo sempre (coloque aos poucos mesmo e vá mexendo, “temperando”, se colocar tudo de uma vez a gema talha). Volte tudo para a panela e cozinhe, mexendo, até engrossar um pouco (ponto de creme inglês), tem que desligar o fogo um pouco antes da mistura ferver. Acrescente então 270g de chocolate amargo picado e 1 colher de sopa de licor de laranja. Misture tudo. Olhe o brilho lindo desse recheio e veja se ele já reflete em você. Deixe esfriar na geladeira uns 20 minutos.
Enquanto esfria cante Ney, dance Ney, sinta Ney.
Estando fria, antes de endurecer muito, coloque o recheio na massa e decore com uma fruta bonita, com flores comestíveis, com castanhas ou com nada. Leve pra gelar por umas 3 horas. Vá tirar um cochilo. Sonhe. Acorde. Desenforme e coma uma fatia. Pra mim, nessa hora, a vida fica leve, como leve pluma, muito leve, leve pousa. Fim.
Se divirta fazendo e comendo. Ela é sinceramente boa.
Eu realmente acredito que uma receita pode nos conduzir por um estado emocional diferente. E cada tipo de receita pode oferecer um tipo específico de emoção – algumas nos dão energia, entusiasmo e vontade de dançar, outras nos acalmam, outras nos fazem refletir sobre coisas complexas, outras nos inspiram a amar. Essa aqui é uma receita de calma, leveza e paz. Através dela, ouvindo uma música gentil e boa, eu experimento um real sentimento de paz.
Ingredientes:
300g de couscous marroquino
Cerca de 10 azeitonas com caroço (porque é bom às vezes usar as coisas como elas realmente são, com caroço e toda verdade delas).
2 colheres de chá de raspas de limão siciliano
cerca de 2 latas de atum sólido
Meia xícara de chá de ervilhas frescas (ou aquelas congeladas)
Cheiro verde picado à gosto
1 tomate picado
Meia cebola média picada
Modo de preparo:
Se seu atum vier no azeite, separe ele do azeite e reserve para usar (nunca jogue algo que pode ser usado fora). Coloque para ferver 300 ml de água, acrescente 2 colheres de sopa de azeite e 1 colher e meia de chá de sal. Quando ferver coloque o couscous, misture, desligue o fogo e deixe hidratar por 8 minutos. Depois abra e misture pra soltar o couscous.
Em uma frigideira coloque 2 colheres de sopa de azeite, leve ao fogo médio e refogue a cebola, em seguida coloque o tomate e a ervilha, também refogue. Acrescente as raspas de limão, as azeitonas e o atum. Refogue até tudo misturar bem. Coloque essa mistura no couscous hidratado e misture tudo. Pronto. Coma em paz.
Bolo de chocolate fácil e incrível, úmido e ao mesmo tempo fofo, com uma cobertura de chocolate amanteigada que torna ele um amor que estava escrito nas estrelas, em cartas de tarot… tava sim. Receita tão querida que virou meu novo vídeo no Youtube – video com participação lindamente especial: minha sobrinha de 8 anos! A gente se divertiu muito juntos e falamos sobre o que você pode proporcionar para uma criança quando chama ela pra cozinhar – tem muita coisa valiosa pra se aprender na cozinha, mesmo. Receita detalhada cheia de experiência emocional já disponível pra você no Youtube! Confira o video!
O nome dela não é Jenifer mas ela é um sucesso absoluto, tanto que virou meu novo video no Youtube, em uma versão melhoradíssima: Cheesecake Romeu e Julieta! Te ensino um passo a passo divertido e eficiente pra você nunca mais errar numa cheesecake nessa vida! E essa cobertura de goiabada? Fácil e deslumbrante. Além da receita, o video te convida a pensar na beleza da união de elementos diferentes e na possibilidade de quebrar as barreiras do preconceito, porque o contraste constrói coisas lindas! Mais uma receita cheia de experiência emocional – porque pra mim, não faria sentido se não tivesse emoção junto. Nunca fará. Vai lá ver o video e me diz o que achou! E não esquece de se inscrever no canal pra gente se emocionar pra sempre juntos! Confere o video: