
Falam muito sobre a crueldade do sistema industrial de carne, como os animais nascem, crescem, morrem e são considerados. Mas ainda há um abismo entre o consumidor de carne e seu contato com o bicho – o bicho, não proteína (odeio esse termo que reduz o animal e tira a coisa “viva” e sagrada que ele é). Acho que é preciso visitar o bicho e sua vida para relembrar que o bicho existe, que o colocamos em um lugar quando escolhemos o que comprar e que assim, temos uma relação com esse bicho e somos responsáveis pelo seu destino. O filme Okja (Netflix, 2017) nos faz visitar o bicho, nos faz encontrar a conexão que temos com os seres vivos que dividem o planeta conosco. O preço de uma vida – Quando entramos em contato real com o animal fica ridículo dizer que o valor de sua vida se reduz ao preço do seu quilo no mercado. O filme Okja é delicado, sensível, parece um filme infantil, mas está longe de ser – aliás, o tom infantil que ele confere aos empresários da industria de carne talvez seja um convite à reflexão sobre a imaturidade e irresponsabilidade de um grupo de pessoas que constroem um desgaste e desequilíbrio da vida de um planeta que também são parte, aniquilando a relação genuína de coexistência que as espécies poderiam ter. Eu não sou vegetariano, não aponto maneiras únicas de viver em paz com o planeta e consigo mesmo, mas você não precisa ser vegetariano para achar assombroso como um bicho é tratado no confinamento. Se um dia eu deixar de comer carne, não será porque acho exatamente sujo comer um animal, mas talvez porque eu ache sujo o que a indústria fez com o animal, tirando qualquer chance dele ter uma vida digna e chegar até nós na cadeia de uma forma que não tira sua dignidade e valor – porque ele não é proteína, é uma vida, e nunca deveria ter deixado de ser visto como tal.
No filme, a confusa CEO de uma poderosa empresa apresenta ao mundo uma nova espécie animal que supostamente foi descoberta no Chile. Apelidada de “super porco”, ela é cuidada em laboratório e tem 26 animais enviados para países distintos, onde cada criador a receberia e cuidaria de acordo com a cultura local. Os animais espalhados pelo planeta seriam, após 10 anos, concorrentes de um concurso que elegeria o melhor “super porco”. Depois dos 10 anos, o filme conta a história da jovem coreana Mija (Seo-Hyun Ahn), que convive desde a infância com um dos animais espalhados pelo mundo, a Okja, o super porco fêmea criado pelo seu avô. Ela cria um vínculo com o animal e quando está prestes a perdê-la devido à proximidade do concurso, Mija decide lutar para ficar ao lado dela, e acaba entrando em contato com a cruel realidade do sistema industrial de carne. Entre pessoas que alimentam esse sistema e pessoas que tentam trazer lucidez para esse trágico cenário, o filme nos emociona e nos incomoda – nos intima a pensar sobre.
A relação afetiva que Mija tem com o animal é uma maneira genial de nos sensibilizar, nos lembrando de que a carne vendida por aí é um bicho – e que os bichos podem se relacionar com nós humanos de maneiras intensas. Essa conexão afetiva constrói ao longo no filme um repúdio em nós ao modo como a indústria vê, considera e classifica os animais. Aquela estranha vergonha de fazer parte da sujeira que acontece no confinamento nasce na gente durante o filme – um sentimento importante de ser elucidado, que pode ganhar destinos importantes. E isso faz do filme um serviço ao planeta – porque sair do mecânico e pensar é sempre o mais difícil, mas quando as pessoas singelamente são convidadas a fazer isso, transformações importantes podem acontecer.
E um aspecto ainda mais genial do filme é o tom infantil que ele confere principalmente aos personagens que representam os empresários da indústria da carne – é possível ler nisso um recado nas entrelinhas – afinal, o modo como as indústrias tem se relacionado com o planeta, com foco sempre na produção capital, pode, de certa ótica, ser visto como infantil (busca de desejos cegos sem medir consequências), imatura e extremamente irresponsável, pois na real, isso tem levado à uma gradual doença dos ecossistemas que todos somos parte – é uma negligência que cava a própria cova, pois nós também somos o planeta. E é engraçado ver no filme os empresários com características de imaturidade, infantilidade, pessoas mimadas ou com dificuldades emocionais que dificultam sua consciência saudável das coisas – mesmo o filme sendo uma ficção, não é muito difícil conectar esse cenário ao nosso, em outros termos.
Precisamos assistir Okja de coração aberto, sem medo de encarar suas próprias responsabilidades – se não a gente fecha o olho e não vê direito o que o filme quer dizer. É importante saber aquilo que você escreve quando escolhe o que consumir. As coisas podem ser diferentes e suas escolhas são importantes. Existem muitos jeitos de comer um animal, existem muitos jeitos também de comer, há alternativas e muita gente séria enxergando coisas sérias. Okja é um presente, bem feito e talentoso, para nos alertar.
O filme é uma produção da Netflix e está até a data desse post disponível no seu catálogo.