Demorou um tempo pra eu conseguir gostar de domingos, no passado eram dias de finais complexos. Depois de anos fui, artesanalmente, transformando eles em lentidão – um dia onde tento que o tempo caminhe e não passe rápido demais sem que eu consiga olhar ele de frente.
No café da manhã de domingo é onde mais tento essa relação gentil com meu tempo – vários preparos, detalhes, nada tão rápido nem nada tão prático – as receitas que ficam prontas em 5 minutos e são consumidas em mais apenas 5 não são para hoje. E mesmo que a receita seja simples (como foi a tapioca e o creme de abacate de hoje) eu demoro mais de propósito. Eu paro pra escolher músicas, às vezes pra dançar, às vezes pra olhar a janela da lavanderia um tempo, pra passar a mão no meu cachorro, pra ajeitar meu vaso de flores, pra tentar registrar meu tempo sem que ele escorra pelas minhas mãos nessa modernidade líquida.
Como qualquer metropolitano sobrecarregado, mesmo nos domingos onde fico tentando sentir o sabor sagrado da lentidão, a pressa e os cálculos das demandas de segunda-feira me atravessam, às vezes cortando com faca cega o tecido do meu tempo calmo – mas aí eu vou tentando voltar, porque afinal de contas, eu esqueço às vezes, mas uma coisa eu aprendi: não adianta muita coisa estar vivo para correr/produzir/calcular/entregar se eu não puder de vez em quando olhar em paz pra minha toalha listrada de mesa e perceber o quanto eu gosto dela, notar que amo deitar no chão da cozinha pro meu cachorro subir em mim, sentir o gosto na boca e lembrar que banana e queijo na tapioca nunca perderá o encanto, ter tempo de pensar que a textura de um creme de abacate é uma obra prima da natureza, que a pitaya é uma coisa misteriosa e bonita demais, que o papo furado das manhãs de domingo com o grande amor da minha vida são a coisa mais aconchegante dos meus dias. Espero que eu possa, na maioria das vezes, me lembrar do que Antônio Candido disse:
“Dizem que tempo é dinheiro, mas isso é uma monstruosidade. O tempo é o tecido de nossas vidas”.
Ostara, Easter, Páscoa. O termo “Páscoa”, vem de “Ostara”, deusa escandinava da primavera – estação do ano que no hemisfério norte se inicia próxima à celebração da Páscoa. Antes mesmo do cristianismo, o dia de Ostara era a celebração do primeiro dia de primavera, do fim do inverno e retorno do sol, do florescimento e renascimento da natureza – o cristianismo uniu essa simbologia de “renascimento da natureza” a ressurreição de Jesus, fato hoje que universalmente simboliza a páscoa. Na antiguidade, o povo anglo-saxão pintava ovos e os oferecia a Ostara, sendo que o ovo sempre simbolizou vida, nascimento, assim como o coelho também era relacionado a Ostara, simbolizando fertilidade e fecundidade na natureza. Daí vem a origem dos ovos e do coelho da páscoa, que eram muito antes os “ovos e coelhos de Ostara”. O tempo transformou os ovos de Ostara em ovos de chocolate, criando uma intima relação desse ingrediente com toda a simbologia que envolve a Páscoa, os ovos, o coelho, a primavera e o renascimento. Por isso Páscoa tem tom de chocolate (do qual os ovos de Ostara deliciosamente acabaram sendo feitos) – a gastronomia tem sempre símbolos e marcas que contam a história da humanidade. Isso é sempre emocionante.
Para celebrar toda a simbologia da Páscoa com, claro, chocolate, fiz uma seleção de nossas melhores receitas que envolvem chocolate! Chocolate também é renascimento, é símbolo, e é maravilhoso… Veja abaixo a seleção com todo amor do mundo:
O que você aprende quando cozinha em casa, de vez em quando, ao invés de comprar sempre pronto? Cozinhar é um convite para frear a dinâmica violenta e veloz do nosso cotidiano e experimentar uma relação diferente com nosso tempo. Quando você para um pouco de se render as sedutoras ofertas de comida pronta e passa a cumprir todo o processo de preparar uma refeição para só depois ter algo pronto para comer, algumas coisas começam a mudar. Além de hábitos mais saudáveis, cozinhar com mais frequência me proporcionou um contato com minhas aspirações pessoais, sentimentos de autorealização e com uma via terapêutica – isso mesmo, cozinhar nos transforma – fazer artesanalmente, com as próprias mãos, ao invés de comprar pronto é libertador e permite a inauguração de possibilidades mais criativas. Bom, preciso falar sobre algumas coisas para que vocês me acompanhem.
Hoje vivemos num mundo onde a indústria alimentícia, restaurantes e redes de fast-food nos oferecem comida pronta, rápida e barata, nos “poupando” do trabalho de cozinhar. Há anos a relação do homem com a comida se transformou, e hoje cozinhar é um serviço amplamente terceirizado, e para que? Para que tenhamos tempo de trabalhar mais e produzir o “capital”. O tempo livre é pouco e pode ser difícil querer usá-lo para cozinhar – esse ato ao longo dos anos foi sendo pejorativamente caracterizado como “muito trabalhoso”. Criou-se o discurso “se puder evitar o trabalho de fazer e puder comprar pronto, melhor”. Trabalhamos tanto que cozinhar soa como mais trabalho, e quando estamos em casa não queremos assumir a posição de “trabalho-produção”, mas sim de “lazer-consumo”, então dedicamos o nosso tempo livre ao que indica lazer e relaxamento, cozinhar é um “trabalho” que passaram a fazer por nós. Apesar de nos últimos 3 anos as pessoas estarem se reaproximando da cozinha, ainda há uma grande alienação e distância entre nós e os pratos que consumimos. Ainda nos nutrimos de coisas que não temos a menor ideia do que as compõe e quais processos aconteceram para que elas se tornassem nossa refeição.
Cozinhar é um exemplo, mas existem diversas outras experiências que abrimos mão de ter no nosso cotidiano, coisas que não permitimos mais viver e, quando podemos, pagamos para que façam por nós. Terceirizamos a educação dos nossos filhos contratando instituições ou funcionários para cuidar deles por períodos integrais, terceirizamos também os momentos recreativos com eles dando brinquedos, celulares e videogames sem construir muitas atividades nas quais todos estejam juntos e implicados em um “encontro”. Terceirizamos o cuidado do nosso lar, das nossas roupas, do nosso jardim, das nossas contas, e por aí vai, são muitos os aspectos de nossa sobrevivência que estão nas mãos de indústrias e prestadores de serviço. Considerando nossa cansativa rotina, poupamos o trabalho que pudermos poupar, sem perceber que ao mesmo tempo nos esquivamos da chance de ter alguns “trabalhos” de outra ordem, aqueles que produzem aprendizagem, autonomia, crescimento emocional, maior implicação com nossa existência e a construção de experiências – Emprego aqui o termo “experiência” pensando no trabalho da psicanalista Maria Rita Kehl, que em seu livro “O tempo e o cão – a atualidade das depressões” aborda nossa dificuldade de construir experiências significativas, o que acaba empobrecendo nossa vida psíquica e a capacidade de enxergar sentido nas coisas.
Em nossos empregos (aqueles que nos tiram todo o tempo) muitas vezes assumimos a ideia de que trabalho e esforço devem produzir dinheiro (só dinheiro), não nos permitimos mais enxergar que trabalho e esforço também podem produzir “experiência”, produzir marcas emocionais boas e aprendizagem – a ação humana é capaz de construir mais que apenas valor capital. A real é que talvez estejamos famintos por outros tipos de produções que podemos construir com nosso tempo. Precisamos nos propor “trabalhos” que produzam sensações que nos nutram emocionalmente – seja transformando o modo como consideramos nossos empregos e tentando enxergar o que nossa prática profissional produz além de salário, ou adotando atividades alternativas em nossa rotina . Porque a real é que produzir apenas dinheiro tem se mostrado pouco e vazio (o número de pessoas com vazios existenciais tem crescido, a depressão no nosso tempo também é um alarme sobre a dinâmica social que assumimos).
O singelo ato de cozinhar em casa nos ajuda a encontrar essa outra possibilidade de produção, que não é de dinheiro, mas sim de sensações boas que se tornarão “experiências” que registraremos em nosso emocional – produzir um simples prato pode trazer mais do que imaginamos, precisamos só parar para notar o que sentimos quando o fazemos – sentir, notar, registrar. Esse processo, que ocorre através de atividades manuais, nos reaproxima de sutilezas esquecidas, massacradas pelo mundo violento e apressado, onde tempo é só dinheiro.
Obviamente não podemos fazer tudo sozinhos, temos muitas vezes que contratar serviços e instituições para nos ajudar a dar conta de todas as demandas da vida, seria impossível talvez cozinhar todos os dias ou cuidar de todas suas tarefas domésticas, dependendo de sua rotina. Podemos contar com ajuda, podemos ser eventualmente espectadores e apreciadores de algo que fazem para nós, ir aos restaurantes que apreciamos, pedir comidas que gostamos, comprar serviços e produtos que admiramos – isso tudo é super importante e saudável, não estamos falando de uma ideia exagerada de autonomia, porque isso seria uma bobagem. O problema é não fazer nunca – fazer você mesmo de vez em quando já muda muito. É o excesso de terceirização que nos priva da chance de contatos riquíssimos. Consumimos o pronto em demasia e estamos distantes demais do “fazer as coisas”. Cozinhar ao invés de comprar pronto é atuar no processo, é implicar-se no “fazer”, é transformar o ingrediente e criar algo com ele, para só depois consumir – temos pulado tudo isso e partido direto para o consumo do pronto – o que perdemos com isso?
Perdemos contato com o que comemos ao ponto de não ter a menor ideia de seu valor nutricional, o que é muito grave e causa uma série de danos à saúde. Porém, me atentarei aqui ao prejuízo emocional e psíquico que parar de cozinhar nos trouxe. É no fazer das coisas que aprendemos, elaboramos, mantemos tradições culturais vivas, construímos experiências e no final podemos ver uma obra nossa e nos sentir potentes, criativos, inspirados e realizados por nossos feitos – pelo que fazemos com nossas mãos. Agora quando não fazemos nada disso e só consumimos o pronto, o que fica com a gente quando a comida acaba? O que de experiência significativa ficou? Quase nada, e aí que entra os tantos vazios que enfrentamos hoje – lembrando que meu foco é sobre o ato de cozinhar, mas essa reflexão pode se estender para várias outras coisas que compramos prontas ou pagamos para fazerem para nós.
Cozinhar em casa hoje é um grande desafio, as ofertas de tudo pronto são muito sedutoras, dão a sensação de libertação – “compre pronto e tenha mais tempo” – aliás, é exatamente nesse tom de libertação que a indústria alimentícia começa a ganhar força, quando ela aproveitou o discurso feminista que crescia na década de 50 para plantar a ideia de que estava ajudando a libertar as mulheres da tarefa de cozinhar, para que elas pudessem ter tempo de fazer o que quisessem. No livro “Cozinhar – Uma história natural da transformação”, Michael Pollan faz uma interessante reflexão sobre fatores sócio-históricos que ajudaram a construir o modo como hoje nos alimentamos. Pollan nos conta que a indústria de alimentos processados e industrializados desenvolveu-se em grande escala no período das grandes guerras, pois era a única alimentação possível aos soldados – não era possível cozinhar comida fresca nos campos de guerra, então esse nicho de mercado era muito funcional para tal situação. Mas aconteceu que as guerras terminaram, e a indústria alimentícia tinha então um problema: Para quem vamos vender agora? Tiveram então que levar seus produtos para dentro das casas da população comum, e aí que tudo começa. A propaganda era pesada e muito persuasiva, sempre colocando a comida industrial e pronta como algo incrível e libertador. Redes de fast-food nos Estados Unidos explodem e iniciam consolidação quando a febre da “comida pronta e prática” começa a surgir, e todos passaram a cozinhar cada vez menos.
Então pensamos: Mas então a indústria alimentícia ajudou nessa ferida histórica ao “libertar as mulheres” e fornecer a chance delas fazerem o que quisessem com seu tempo sem precisar cozinhar mais! Isso não é ótimo? Bom, não é bem assim. Pollan também traz dados muito interessantes sobre o feminismo e sua relação com a questão da indústria alimentícia. Claro que de alguma forma ter outra maneira de alimentar a família pode ter contribuído com a saída da mulher da opressão do lar para ganhar terrenos novos, porém a história tem alguns outros lados. A verdade é que os alimentos processados começam a entrar na casa das pessoas antes mesmo da mulher sair da cozinha – e de casa – para trabalhar fora. A oferta industrial era tão agressiva que ainda quando havia tempo para continuar cozinhando comida fresca as pessoas já começaram a consumir comida industrial. E uma pergunta importantíssima: quando a mulher para de se dedicar apenas ao lar e sai para trabalhar fora, porque é que foi a indústria que teve que cozinhar para a família? O problema se estende ao fato de que ao invés de homens e mulheres resolverem o problema com uma nova configuração de funções, pensando numa possibilidade de as tarefas de casa (entre elas, cozinhar) ser divida entre os dois, eles decidem deixar que a indústria fizesse para eles. De certa forma perde-se a chance de questionar valores e dar um novo rumo às demandas domésticas, repensando o papel do homem e da mulher na sociedade. Ao invés disso vemos a continuidade de um posicionamento machista, pois o cenário foi: Se a mulher não pode mais cozinhar, então ninguém pode. Mantém-se assim a ideia de que apenas a mulher poderia cozinhar, o homem continua fora do cenário doméstico. – ao invés de uma perspectiva ser transformada ela é varrida para debaixo do tapete com a solução “perfeita” da indústria, que obviamente era também a consolidação de um grande nicho econômico que produziria muito lucro. A indústria alimentícia se aliou ao elemento feminista para fortalecer seu discurso de venda e dizer que estava libertando as mulheres, mas no discurso oculto de suas propagandas ela continuava a reforçar a ideia de que em casa apenas a mulher podia cozinhar, fazendo assim a manutenção de um discurso opressor. Nada muda muito, afinal.
Ainda vale ressaltar que, dentro das questões do feminismo, cozinhar não era exatamente um ponto central no cenário doméstico opressor em que a mulher se via. Outras tarefas domésticas se mostravam mais estafantes do que cozinhar, que sempre teve um tom diferente de outros trabalhos domésticos por ser um ato também relacionado à arte, criação, revelação e prazer. Simone de Beauvoir em “O Segundo Sexo” diferencia o ato de cozinhar de outras demandas domésticas, justamente por ser um ato que dava ao humano a possibilidade de “criação e revelação” – claro que há um tom bem francês em tal perspectiva, mas ela nos faz notar o quanto talvez deixamos de cozinhar em casa não porque as pessoas odiassem tanto isso, mas sim porque um nicho econômico precisava que víssemos assim, e vendeu essa imagem para depois poder nos vender sua comida.
Depois de pensar um pouco em alguns elementos históricos que nos afastaram da cozinha, te pergunto: Porque eu deveria cozinhar? Porque tenho me focado justamente nessa ação?
Porque ela é implicar-se com a ação mais antiga e importante para nossa sobrevivência, que impacta nossa saúde, explora a relação do homem com a natureza e é ironicamente a que mais terceirizamos hoje. A ideia é retornar a uma possibilidade artesanal de alimentar-se, de viver – artesanal é o que é feito por nossas mãos. Cozinhar é pegar ingredientes crus, combiná-los e transformá-los em refeição – esquentar a pizza congelada no forno não é cozinhar, como muitos hoje acham (essa coisa de semi-pronto talvez seja só para nos plantar a ilusão de que estamos cozinhando e acalentar um pouco o mal estar de “nunca fazer”). Ao cozinhar nos apropriamos de um trabalho, conhecemos o ingrediente e o modo como a natureza nos oferece as coisas, atuamos em um processo e aprendemos. Saímos da ação automática de consumir o pronto e entramos em contato com a essência de algo. Quando nos notamos construindo e criando coisas algo muda dentro de nós, nasce uma experiência transformadora, delicada e subjetiva, que alimenta de alguma forma nossa satisfação pessoal, e consequentemente nossa saúde emocional. Quando cozinhamos aprendemos a lidar com o ingrediente, entramos em contato com a natureza que fazemos parte e criamos uma obra, então cozinhar se torna mais do que um ato corriqueiro para matar a fome do corpo, matamos uma fome de experiências significativas e transformadoras – Afinal, “a gente não quer só comida”, não é mesmo?
Pode soar estranho, mas acho que faz todo sentido relacionar o ato de cozinhar em casa com um processo psicoterapêutico (não dizendo que são a mesma coisa, que um possa substituir o outro ou algo assim, me refiro ao ato de cozinhar como uma metáfora que explica alguns elementos do processo psicoterapêutico). Na terapia, grosso modo, “deitamos no divã”* para entrar em contato com nosso funcionamento emocional e compreendê-lo, saindo do automático e podendo transformar nosso modo de construir experiências e viver. O trabalho da terapia é buscar uma apropriação do funcionamento de algo (do nosso psiquismo, no caso) para poder agir com mais autonomia e criatividade, quem sabe, reescolher o modo como tenho experimentado a vida. Claramente posso ver essa situação no ato de cozinhar – que na real, também é mergulhar no contato com um processo muitas vezes oculto a nós, apropriar-se de algo que hoje nos é misterioso, que normalmente fazem por nós e nem sabemos como funciona, e dessa forma compreender um processo, conseguir conhecer ingredientes, transformá-los e criar algo com eles, nos tornando mais autônomos e autores. Cozinhar dá trabalho e leva tempo, às vezes incomoda e não soa tão confortável ou simples. Uma psicoterapia pessoal dá trabalho e leva tempo, às vezes incomoda e não soa tão confortável ou simples. Porém ambos podem construir possibilidades mais próprias, autorais, criativas, reveladoras e menos alienadas, no qual nos implicamos mais com as coisas de nossa vida e podemos assim extrair dela experiências significativas.
Cozinhar pode ser um desafio. Escolher onde comprar ingredientes frescos, como conservá-los, usá-los no prazo adequado, evitar contaminações e mau uso dos produtos, ter ideias do que fazer, aprender a usar as coisas – sim, é trabalhoso, mas cada parte desse processo nos aproxima de coisas valiosas sobre o mundo natural, sobre as relações em torno do ato social que é alimentar-se, sobre nosso modo de lidar com as coisas, sobre quem somos.
Há cerca de 5 anos desenvolvi um projeto – um blog – chamado “Quando a cozinha é um Divã”. Inicialmente era uma forma de registrar minhas experiências com a cozinha, sempre a vinculando com aspectos emocionais. Hoje o blog é uma referência quando se trata de pensar no ato de cozinhar como algo que nos movimenta emocionalmente e socialmente. Como podemos nos sentir incríveis, inteiros e potentes cozinhando? A ideia por trás do blog me ajudou a resgatar coisas importantes que o mundo em que “tempo é dinheiro” estava me fazendo esquecer – eu “parei” esse tempo para cozinhar. O blog hoje busca expandir a ideia que esse artigo apresenta, ampliando o modo como as pessoas se relacionam com sua alimentação, e consequentemente com suas vidas.
Há hoje em dia muita gente também questionando a maneira como nos alimentamos. Temos o movimento Slow-food, que se contrapõe ao fast-food e resgata o valor da lentidão. Temos também o exemplo do trabalho delicado de reencontro a natureza que muitos chefs e instituições pregam, como exemplo: A chef Paola Carosella em suas falas e trabalhos nos propõe a explorar e repensar nosso encontro com o natural do mundo, questionando a relação que temos com esse natural, como o aproveitamos e respeitamos. Outro exemplo que nos inspira a transformar a ideia que temos sobre cozinhar: A empolgante e divertida Raíza Costa, confeiteira e criadora de conteúdo digital, se dedica a ensinar pessoas a cozinhar. Só isso? Não. Raíza apresenta suas receitas e ensinamentos de uma forma revolucionária por dois motivos: Primeiro porque ela é cativante e divertidíssima no seu trabalho, e isso muito mais do que entretenimento torna o convite de cozinhar em casa muito mais interessante, resgatando um valor de prazer e alegria em volta do ato de cozinhar – aquilo que como vimos acima, os interesses econômicos do mundo industrial nos fez perder. E outro elemento interessantíssimo é o modo como ela incentiva o trabalho artesanal, nos ensinando a fazer em casa inúmeros preparos que normalmente compramos pronto, explicando processos químicos que ocorrem nas receitas, como controlar esses processos e como valorizar aquilo que você coloca no que vai comer – uma tomada de consciência total. Raíza planta em seu trabalho toda ideia de reencontro com o artesanal e com a autonomia que tenho falado, o que torna seu trabalho um serviço social diante do mal estar da industrialização que vivemos.
Ao cozinhar transformamos algo em nós para depois transformar outras experiências na vida. Considero que o hábito de cozinhar faz nascer algo que não se encerra na cozinha, pois ele possibilita a chance de apropriação de outras coisas. É como um desejo que nasce de fazer mais com nossas mãos, de criar mais marcas – quando notamos o valor de uma prática a levamos a diante de diversos modos, é um certo gosto que adquirimos por não deixar mais que façam sempre algo por nós, mas que façamos um pouco desse algo com nossas mãos de vez em quando – para aprender, apropriar-se, crescer e criar. Cozinhar é um agente transformador que nos convida a repensar muitas práticas – inclusive sobre como temos encarado nossos empregos, os trabalhos formais, repensando o modo como conferimos à eles a função de produzir só dinheiro – o que mais nossas práticas produzem? Quais marcas criamos ou podemos criar todos os dias, também no “horário comercial”?).
Cozinhar é revolucionário, eu acho. É um modo de sair da condenação que o esquema econômico nos impõe, de dizer um pouco de não aos duros imperativos de consumo e alienação, é rebelar-se diante da falta de vivências significativas. Cozinhar, além de nos aproximar do que comemos e melhorar a qualidade da nossa saúde tem um forte fator emocional, se torna uma possibilidade de autoria que pode ganhar proporções sensacionais, abrindo novas reflexões sobre o modo como temos vivido e mantido certas práticas. Nos faz questionar nosso distanciamento das coisas simples e importantes, do mundo, da natureza e das pessoas que amamos. Cozinhar se torna um contato mais artesanal com a própria vida, se torna uma ação simbólica que amplia o modo como tenho feito a minha obra psíquica e me relacionado com o mundo. Cozinhar é também valorizar o tempo de uma forma diferente – tempo é muito mais que dinheiro. Cozinhar é, por fim, reencontrar o artesanal – o feito com a mão, e não na produção em massa – e o mais humano que nos compõe, vendo possibilidades mais criativas, singulares, reveladoras e emocionantes.
*O divã é uma ferramenta usada pelo psicólogo ou psicanalista para psicoterapia ou análise, mas claro, não é o único meio de uma psicoterapia acontecer. Destaquei e usei o termo para fazer alusão ao nome do meu blog – “Quando a cozinha é um divã” – e também porque na minha prática e abordagem enquanto psicólogo, quando atuo em consultório, o divã é ferramenta presente.
Referências bibliográficas:
POLLAN, M. Cozinhar: uma história natural da transformação; tradução Cláudio Figueiredo. – 1. Ed. – Rio de Janeiro: Intrínseca, 2014.
KEHL, M. R. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009.
DE BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo; tradução de Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
Quando nos aproximamos mais do que as coisas realmente são a tendência é respeitá-las mais. A minha relação com um pedaço de carne hoje em dia sempre começa pelo respeito – toda vez que toco uma carne, eu respiro fundo, penso, e agradeço. O bicho não é”um pedaço de proteína”. É um bicho. E se você quer comer um pedaço de carne com honestidade tem que lidar com isso. Fico um pouco bravo com o hábito de se referir à carne como “proteína”, é reduzir e mascarar demais. É um bicho gente, nada vai mudar isso. Se você entende isso e se responsabiliza pela sua escolha, você come carne de um jeito coerente, respeitoso. Quando eu lembro que é um bicho eu penso no modo como o bicho chega até mim, penso na origem da carne que compro (e escolher a origem certa pode mudar muita coisa). Quando lembro que a carne é um bicho penso com muita seriedade em como vou temperar, cozinhar e comer – todo processo se torna um ritual sagrado e antigo, que eu só construo com cuidado e respeito se lembro que estou cozinhando um animal – e isso é uma coisa séria, se for para fazer, que seja com respeito, coerência e dignidade. Por isso saber como tratar direito a carne é muito, muito importante.
Eu aprendi com minha família, com as minhas leituras e com a Paola Carosella a ter alguns cuidados e gentilezas na hora de lidar com uma carne, e quero compartilhar com vocês. Aqui vou me ater a dicas sobre carnes vermelhas, em especial: Miolo de acém, costelas, contrafilé, filé de costela (o famoso bife ancho ou entrecôte) ou outros cortes que tem gorduras em proporções semelhantes a desses. No geral essas dicas servem para outras carnes também (até peixes e aves), mas é legal sempre pensar se algum tipo de carne não exige cuidados mais específicos. Vamos lá:
A origem da carne: Eu sei que isso é muito difícil, mas é muito importante, e você precisa saber que é importante. De onde vem a carne que você compra? Se puder entrar em contato com a história da carne e saber como o produtor cria o “bicho”, é algo bem valioso e bonito da sua parte. Talvez você possa, a partir disso, escolher produtores que criem melhor que outros. Isso , além de bonito, também te dá mais tranquilidade e confiança no que você coloca na mesa para sua família comer.
Não comprar carne congelada ou congelar a carne que você comprou. Quando a carne é congelada as fibras se alteram e muita coisa se perde – por exemplo, a capacidade da carne de reter suco e ficar suculenta e incrível (perceba que carnes que foram congeladas tendem a ficar secas após cozidas). Compre fresca e faça fresca.
Temperar com antecedência. Tem muitas teorias sobre isso e cada uma tem seu ponto de vista coerente, porém aprendi isso com gente que respeito muito (minha mãe e Paola Carosella) e também testei muito, e conclui que temperar a maioria das carnes com antecedência não ressaca a carne (como muitos acham) e confere à ela uma complexidade de sabor diferente. O tempo de antecedência para temperar depende da carne, mas carne de boi no geral tempero com 12 /24 horas de antecedência, sempre deu certo.
Temperar com o que e quanto de sal?A quantidade de sal depende de cada carne e dos hábitos de cada um. A Paola Carosella no livro “Todas as sextas” indica uma colher de sobremesa cheia para cada quilo de carne. Tenho usado essa proporção e tem dado muito certo. Gosto muito de temperar carnes vermelhas com um grande mix de ervas verdes frescas e azeite de oliva extravirgem. Faço uma mistura com o que tenho e gosto de ervas, azeite, o sal e pimenta. Que tempero pôr é muito particular às vezes. Seja lá o que escolher como erva e tempero, todos eles vão junto para ficar ali com a carne por longas horas, antes de cozinhar.
Preste atenção no tamanho dos pedaços de carne que você assa. É muito legal quando a carne tem uma proporção boa de crosta tostada por fora e interior rosado por dentro – uma peça muito grande assada de uma vez gera muito miolo rosado e pouca crosta. Fracione, é interessante, você terá mais equilíbrio e todos que comerem com você terão partes tostadas e partes suculentas do interior. O tamanho da peça de carne faz bastante diferença.
Preste atenção na temperatura em que a carne está na hora de cozinhar ela.Quando você leva ao forno, panela ou grelha uma carne gelada, há um desequilíbrio no tempo que o exterior e interior dela vão cozinhar, normalmente queima por fora e não atinge o ponto certo dentro. Sempre é legal tirar a carne da geladeira umas 2 ou 3 horas antes de assar para ela atingir temperatura ambiente, dá mais certo e o cozimento é mais simples e correto.
No geral, essas são regras primordiais no trato inicial de uma carne. Pensar qual comprar, em que estado comprar, em que tamanho cortá-la, como e quando temperar temperar e em que estado deixá-la até o momento de cozinhar. Depois disso vem o cozimento, que será feito de acordo com a receita que você irá seguir. Mas essa preparação e cuidado antes do cozimento faz bastante diferença, eu acredito muito.
Em breve vou compartilhar uma receita de carne assada – de um jeito simples e muito grandioso ao mesmo tempo, é de emocionar.
Agradeça o bicho. E não esqueça – a carne é um bicho.
Durante minha infância, minha mãe sempre fez doces para vender. Esse era um trabalho que nos ajudava muito. Em uma páscoa, quando eu tinha 12 anos, fizemos ovos. Era minha mãe, uma tia e eu, imersos no chocolate, horas e horas fazendo ovos, trufas, bombons e pirulitos. Tivemos mais encomendas do que imaginávamos e ficamos tão felizes – elas trabalhavam muito e muito alegres, pra mim era mágico estar ali, todo aquele trabalho era feito com uma energia profunda, cada pedido importava muito pra gente. Quando entregávamos cada encomenda era com um orgulho gigante, era nossa obra, feita pelas nossas mãos. Naquela páscoa o dinheiro das vendas foi muito importante pra nós. Por conta da ajuda que dei, minha mãe e minha tia me deram um valor – eu fiquei tão feliz, lembro que fui em uma livraria e comprei 3 livros que me fizeram companhia por alguns meses, foi bem especial. Estou falando tudo isso para você entender o que é comprar de pequenos produtores – seu dinheiro promove esse tipo de coisa e incentiva algo muito valioso. Fora que comer o que é feito por pessoas e não por máquinas é sempre outra coisa. Nessa foto eu estou em casa, fazendo “à mão” meus chocolates para presentear quem amo. Vou compartilhar algumas receitas com vocês, mas caso não possam fazer seus próprios ovos, pensem bem onde vocês irão comprá-los. Vou também compartilhar no Instagram essa semana o trabalho de alguns produtores pequenos que conheci, trabalhos de gente que faz com afeto e verdade o que faz. Enfim. O consumo nessas épocas e o dinheiro que a gente gasta pode alimentar coisas bem boas. Pense bem antes de comprar, pense. Logo logo dicas para uma páscoa artesanal, humana e afetiva.
Finalizei o projeto “Gratidão de todas as sextas”. Cozinhei as 94 receitas do livro “Todas as sextas”, de Paola Carosella. Me comprometi, no dia 11/11/2016 (clique aqui e veja como tudo começou) a cozinhar todas as receitas e ir postando (no meu blog e Instagram) toda sexta-feira o resultado daquilo que foi feito na semana, e assim foi. Estou aqui pensando em como, em um texto de finalização, significar e registrar tudo que esse projeto foi, daí me ocorre que faz sentido começar esse texto falando do fim do projeto, da receita 94/94: O Pão Arturito – Eu levei 15 dias e 17 horas para fazer essa receita (o pão, em muitos sentidos, é o senhor do tempo), e quando acabei consegui firmemente compreender a maior lição do livro: O valor do tempo. É isso. É sobre isso que o livro é: Tempo, vida e cozinha – porque foi uma COZINHEIRA (em caps, para ser verossímel) que escreveu sobre tempo e vida, e ela fez isso através da cozinha.
O livro “Todas as sextas” é o primeiro livro de Paola Carosella. Ele é composto de um relato autobiográfico profundo e de 94 receitas – cada uma delas trazendo uma reflexão e uma conexão com a história da cozinheira. Não é um livro culinário qualquer. As receitas nos fazem questionar nossas escolhas e hábitos, nos incomodam e nos movimentam. Para prepará-las tudo começava com a busca pelos ingredientes, e essa era uma etapa muito séria, porque Paola no livro é convicta ao falar da importância dos ingredientes – tinham que ser ovos de galinha de vida digna, carnes de animais que também tiveram vidas dignas, frutas e legumes plantados e cuidados por pessoas que fazem do jeito honesto o que fazem, farinhas vendidas por pessoas que tenham “olhos de pessoas do bem”, confiáveis – e eu não estava afim de contrariar as indicações, eu queria fazer direito para aprender de verdade o que estava ali sendo dito, então foram muitas caminhadas por São Paulo para encontrar os ingredientes certos. Após ter encontrado tudo para cada receita, na hora de cozinhar eu tinha que escolher uma panela que eu tivesse carinho (afeto importa), tinha que tratar os ingredientes respeitando seu tempo de descanso (alguns precisavam de 1 hora, outros de 24 horas, outros de 15 dias). Eu também tinha que entender o valor do fogo baixo e do tempo lento de cozimento, nada de pressa e pressão. Para servir o prato, tinha que ser também numa louça bonita – eu tinha que ser atencioso e gentil com a refeição, a cada instante – e comer tudo isso no final era quase sempre uma oração, uma recompensa e reflexão profunda do que implicava todo o processo – e do que ia sendo transformado em mim enquanto eu transformava ingredientes desse jeito.
Cozinhar desse jeito muda a gente, não tem como sair igualzinho. Para fazer tudo isso antes de qualquer coisa eu tive que “parar” – frear a velocidade desse mundo rápido e agressivo que vivemos para experimentar, através das receitas, uma outra experiência de tempo – um tempo lento, que corre diferente, que precisa respeitar o tempo dos processos naturais, um tempo que me fez pensar em como eu estava usando e experimentando o próprio tempo da minha existência. A verdade é que eu entendi mais do que nunca o quanto perdemos por causa da nossa pressa, da nossa incompreensão das coisas e do tempo que elas precisam levar para ficarem prontas. Cozinhando assim, eu tive então “tempo” de pensar na minha relação com a natureza quando escolhia ingredientes e quando os tratava de determinado modo, tive tempo de compreender o que de bonito acontece quando esperamos, tive tempo de me acalmar depois de dias complicados enquanto estava ali, cortando uma cebola, por exemplo. Tive tempo de pensar no quanto minhas escolhas impactam o mundo que eu habito. Tive tempo de pensar nos meus afetos e elaborá-los, enquanto construía uma refeição com minhas mãos. Tive tempo, inclusive, de me lembrar do quanto a cozinha é simbólica na minha vida e é, há tantos anos, o meu divã – lugar onde eu sempre pude me encontrar em paz comigo mesmo.
O livro fala muitas vezes da importância de fazer artesanalmente – com as nossas mãos – aquilo que vamos comer. Eu acredito de verdade que existe uma via terapêutica em fazer artesanalmente algo que normalmente compramos pronto no mercado. É uma via que te permite autonomia e apropriação de um processo que normalmente você deixa que façam por você. Isso também é transformador, existe uma auto-realização grande em terminar uma refeição e falar no final: Eu que fiz, cada detalhe, do inicio ao fim, eu construí e transformei isso, estou implicado na coisa. A gente registra no nosso psiquismo coisas muito importantes quando nos vemos implicados nas coisas.
Fazer as receitas do modo como Paola conta também me permitiu pensar em tantos aspectos sociais, no modo como temos tratado o mundo e como temos nos relacionado com as pessoas. Quando escolho comprar de um pequeno produtor o que meu dinheiro incentiva? Quando escolho alimentos orgânicos o que ajudo a manter com meu ato? Há muito a se pensar, comer é um ato político e nossas escolhas conduzem o lugar social das coisas. Temos mais poder do que pensamos. O livro “Todas as sextas” também é um alerta, sutil e gentil, mas um alerta.
Quando comecei o projeto, estava envolvido por um sentimento muito forte de gratidão. Ao ler o inicio do livro, que é composto de um relato autobiográfico de Paola, muitas coisas na minha história foram tocadas. O mais legal de admirar pessoas é em algum momento notar o que essas pessoas que admiramos podem nos revelar de nós a nós mesmos – se conduzirmos de uma forma boa, admirar alguém é algo que revela algo muito importante sobre nós, algo que muitas vezes não reconhecemos como nosso, mas que é. O outro ajuda a gente a notar. No meio desse insight e gratidão por Paola ter feito uma obra tão generosa e honesta, eu quis cozinhar o livro inteiro. Era para agradecer, para aprender, para ter um propósito novo. Hoje sei que era mesmo preciso cozinhar o livro todo, porque era preciso que eu me encontrasse com tudo isso. Me sinto mais convicto em relação ao modo como escrevo, com cozinho e até como faço meu trabalho como psicólogo – pude pensar em tudo que a cozinha, de um jeito metafórico e profundo, me faz pensar – porque quando a gente entende melhor o valor do tempo, tudo muda.
O projeto “Gratidão de todas as sextas” nasceu de um encontro – do meu com o livro. Mas ele gerou muitos outros encontros. Através do meu Instagram, milhares de pessoas acompanharam as postagens e compartilharam comigo o que sentiam com elas. A troca de narrativas que o projeto gerou e o alcance que ele teve me surpreendeu e me emocionou muito. Então tudo começou a ser algo maior e com mais sentido, onde quem ia acompanhando ia se transformando junto comigo, repensando sua relação com a comida e com o tempo. O projeto foi feito de encontros que deixaram muitas marcas. Pensar nisso me emociona muito, vai pra sempre emocionar.
Existe sim uma semelhança nesse projeto com o que Julie Powell fez com o livro de receitas de Julia Child – Vemos essa história no livro e filme Julie & Julia, que conta como Julie decidiu cozinhar as 524 receitas do livro de Julia em 365 dias. Essa história também me inspira, porque assim como Julie eu também fui salvo de uma vida um pouco triste e sem cor quando decidi que precisava cozinhar e escrever (quando o blog nasceu, aliás). Mas aqui, Paola foi minha Julia e “Todas as sextas” foi meu “Mastering the Art of French Cooking”.
Enfim, é isso. Acabou as 94. Algumas acertei muito que pulei de emoção, outras errei bastante. Todas me ensinaram muito. Eu tenho tanta coisa ainda pra dizer desse projeto, mas acho que isso não se encerra nunca, não cabe num texto, cabe dentro de mim e da bagagem que levo agora. Eu tive sucesso no projeto – mas um conceito diferente de sucesso. No mundo onde tempo é dinheiro, sucesso tem a ver com velocidade, rapidez, lucro em menos tempo e etc – e esse tipo de “sucesso” pode ser um slogan aniquilador e vazio. O sucesso que eu tive no projeto veio da calma e do tempo que corre diferente, veio das caminhadas longas por São Paulo buscando ingredientes, veio das tardes calmas esperando a panela cozinhar durante horas, do tempo que eu tinha enquanto esperava perto da panela e podia pensar nas coisas da vida, veio da emoção de compartilhar, veio da alegria de sentar e comer na mesa todas as receitas com alguém que eu amava. O sucesso veio de parar, respirar fundo, fazer, depois apreciar, e guardar pra sempre. O nome dessa história é gratidão. Como em todos os dias em que cozinhei cada uma das receitas, hoje eu só queria agradecer.
Olhando na categoria do blog chamada “Gratidão de todas as sextas” você encontra todas as postagens, de cada uma das receitas. No meu Instagram também (@rodrigo.vilasboas) tem tudo lá. Também é possível encontrar os posts na hashtag #gratidaodetodasassextas .
O projeto gratidão de todas as sextas (que tem um longo porque que explico no post que fiz 11/11/2016). A ideia inicial era fazer as 94 receitas do livro “Todas as sextas” da @paolacarosella em 1 ano. Mas hoje, 1 ano e 15 dias depois fiz 81 receitas, faltam 13. Eu queria contar porque atrasou. Na verdade, quando eu terminar tudo e respirar profundamente a emoção de ter feito a receita 94 vou escrever melhor sobre isso, mas quero adiantar um pouco sobre a maior marca que o projeto tem deixado: Uma experiência diferente de tempo. Esperar e não atropelar o tempo natural da vida por causa do meu desejo apressado ou da minha incompreensão das coisas. Ao falar do tempo do animal crescer, do tempo dos legumes, do tempo do cozimento lento, do descanso da massa e tantos outros tempos, o livro faz um convite profundo para repensarmos como temos nos relacionado com o tempo, e ele faz isso através da cozinha, o que é lindo. É transformador se reconectar ao tempo da natureza. Hoje em dia a grande dificuldade de espera nos faz atropelar os processos naturais da vida – desde esperar sua vez em uma fila, esperar a galinha crescer sem dar comida que não é a dela ou injetar coisas horríveis nela ou até mesmo esperar uma sofrimento amadurecer e fluir sem tomar demasiadamente um monte de antidepressivos. Ninguém quer esperar nada. Desde que falaram que tempo é dinheiro esquecemos que, na verdade, o tempo é o tecido das nossas vidas. Então é por isso que o projeto atrasou, porque eu mergulhei no tempo que ele convida, tinha receita que eu achei que ia comer no almoço mas no fluir dela só deu pra comer na jantar. Tinha dia que não achei no mercado perto de casa um ingrediente e tive que atravessar São Paulo para achar a coisa correta e honesta. Enfim, não teria nenhum sentido se eu não seguisse isso. Obrigado à tanta gente que foi acompanhando com tanta emoção o projeto, isso fez muita diferença e cada mensagem foi/é um presente. Na foto, propositalmente, a receita de magret de pato curado, comecei hoje, em uns 15 dias vai ficar pronta. Enfim, queria contar isso e agradecer. Faltam 13. Quase lá.
Exposição “Miró – la experiencia de mirar” do Museo Nacional de Bellas Artes, em Buenos Aires.
Miró e minha comida, há um laço delicado que conecta essas duas coisas. A obra do artista espanhol Joan Miró sempre foi uma inspiração simbólica para muitas coisas ao longo da minha existência, seu traçado singelo, mas ao mesmo tempo brilhante e revelador, era um convite para que eu experimentasse o prazer simples e possível nos dias em que as alternativas de prazer não eram tantas. Na minha comida a marca dessa inspiração é também muito intensa, trazendo todo o traçado de Miró que é acessível, absolutamente simples mas promotor de uma experiência profunda. Vou explicar com calma um pouco do que vejo em Miró, e então ficará mais fácil entender o que dele existe na minha gastronomia.
A comida é a mensagem que o cozinheiro transmite. O cozinheiro interpreta sua época, seu espaço e também sua subjetividade e soma tudo isso, produzindo uma obra que conte um pouco de cada um desses elementos através de sua comida e do modo como ele a faz. A inspiração para a produção dessas obras que contam tanta coisa podem vir de muitos lugares, de muitos encontros, de muitas pessoas, de muitas histórias – as experiências e emoções que a vida nos apresenta vão sendo nosso repertório para criar nossas coisas. Toda criação conta alguma coisa da história e experiência do criador. Entre tantas fontes de inspiração para as criações da minha vida, as artes plásticas sempre tiveram um papel muito forte nisso, e Miró estava ali – estava ali em muitos momentos em que eu construía meu jeito de dizer como é o mundo que habita em mim e como vejo o mundo que habito. Acho que é gentil que eu fale um pouco do que sei de Miró, para então dizer o que tem dele na minha comida.
Joan Miró foi um artista surrealista espanhol (1893-1983), o mais impactante de sua obra é seu traço simples, puro, acessível, direto. Ele tentava retratar a natureza das coisas como faria um homem primitivo ou uma criança, que tivesse no entanto a habilidade narrativa e intelectual de um homem maduro de seu tempo – é uma linguagem simples que conta coisas fortes e intensas. As formas de Miró são simples, a colocação de suas cores também o são, mas o recado disso tudo é sempre forte, e esse recado forte chega até nós facilmente justamente pela simplicidade da composição de suas obras – não são trabalhos complexos postos em milhões de camadas que tornam trabalhoso nosso acesso as formas e as cores da obra, em Miró você olha e vê, e é aquilo, então extrai muito disso. Ele trazia uma visão despojada, intuitiva. Suas formas se transformavam em outras formas, criando ideias e elementos, como se um traço “parisse” o outro.
Tive a emocionante surpresa de encontrar uma exposição linda de Miró no Museo Nacional de Bellas Artes em Buenos Aires na última semana, e pude “mirar” de perto toda essa expressão. Pude reencontrar a emoção de outras horas, que eram ativadas conforme eu olhava e sentia cada traçado simples dele. Olhe as imagens do post (que fotografei na exposição) e tente facilmente ver as cores, as formas, e como elas são acessíveis e claras. E em seguida leia o próximo parágrafo.
Finalmente te conto o que tem de Miró na minha comida. Meus pratos, no geral, são simples e com traços claros – tenho gostado cada vez mais de entender a natureza orgânica de cada ingrediente e cozinhá-lo de um modo que deixe o que ele tem de maravilhoso evidente – a beleza de um ingrediente em sua simplicidade e verdade. Tenho visto o quanto é bonito não perder a identidade do ingrediente, intervindo nele (cozinhando ele) o suficiente para abrilhantar mais o que de mágico a natureza já fez. Também gosto de preparos complexos, não sou assim tão simples também, mas é emocionante, mesmo num preparo complexo, ainda ser possível enxergar no prato a assinatura oficial de tudo: a da natureza. Meus pratos tem preparos e apresentações simples que ressaltam a formas, as cores e sabores do ingredientes, sem tornar essa percepção muito impossível a quem come – quero que seja acessível uma experiência sensorial plena e de verdade, com comida clara, boa, e que te marque. Que seja simples, mas que seja incrível. Você pode notar isso checando a recente receita que compartilhei de “pão com ovo”. É valioso possibilitar que a emoção seja construída, captada e registrada na refeição, por mais simples que ela seja – e é aí que Miró está na minha comida: Assim como a obra de Miró, tento em traçados (preparos) simples proporcionar uma experiência intensa, que conecte afetivamente a pessoa a riqueza do singelo.
Durante a minha infância, cresci em um contexto que me convocou a descobrir o valor e o belo nas coisas simples, no que eu tinha disponível, e isso era um desafio muitas vezes, mas desenvolveu minha condição de ver brilho profundo no singelo. Sou profundamente grato pelas chances que tive.
Enfim, eu precisava falar hoje de Miró, estou muito feliz desse presente que foi encontrar a exposição e reencontrar essa verdade sobre mim e sobre o que tenho feito com minhas mãos. Hoje eu queria agradecer. Eu amo desde sempre ver, viver e sentir o prazer do simples, dos traçados singelos da vida, e na minha comida não seria diferente.
O alface crescendo na minha horta, no quintal de casa, que observo todo dia da janela do meu quarto. Poucas coisas são tão valiosas quanto ver seu alimento crescer, em uma terra honesta, limpa, que produz um alimento honesto, real e limpo. A terra da minha horta é simbólica, ela é cuidada e tem a marca de muitas mãos generosas e carinhosas – não cuido dela sozinho. Nessa terra está escrito o conhecimento e afeto que minha família tem por terra e mato, está nela nosso apego à natureza que pra gente é uma espécie de oração. Acreditamos no poder e amor infinido que vem da terra, acreditamos muito. A horta do meu quintal produz alimentos que compartilhamos, com familiares e vizinhos, não nos custa compartilhar e o coletivo é sempre gratificante e belo. Já pensou em ver sua comida crescer e acompanhar a engenhosidade emocionante da natureza no seu quintal? Ou já pensou em comprar comida com esse selo de qualidade (limpa, de terra e mãos honestas e amorosas)? Já pensou em fazer com seus vizinhos uma horta coletiva num cantinho qualquer? O que chamamos de alimento orgânico tem uma história muito importante e linda por trás. O que seu corpo recebe, o que vai para a mesa da sua família, os hábitos sociais e comunitários que você pode construir através da comida – muito está a seu alcance fazer e transformar. Repense, reescolha, produza diversas marcas boas enquanto se alimenta. Plantar o meu alface me traz uma refeição linda, viva e saudável, mas também me traz emoções bonitas, contatos com a natureza (e um maior respeito à ela), me traz a chance de compartilhar, me traz iluminação, me traz o Deus que acredito e vejo no natural do mundo (na terra…), me traz uma lição sobre o tempo das coisas e me faz pensar no que compõe minhas escolhas. Comer é um ato social e psicológico, há muito dentro disso. Pensem. Sou tão grato ao pé de alface que cresce na terra do meu quintal e ajuda a crescer em mim hábitos bons, vivos, plenos. A fertilidade do bom. Da terra pra dentro de mim, de dentro de mim para os outros. Todos nós. Plante alguma coisa para comer alguma vez na vida.
Galinhas de vida digna. Paola Carosella usa muito esse termo em seu livro “Todas as sextas”, nos convidando à refletir sobre a nossa escolha de ingredientes. Quanto mais penso sobre esse termo, mais o acho lindo, mais ele me emociona. Galinhas de vida digna são aquelas criadas soltas, em lugares bons, que tenham a chance de ter adequados ciclos de descanso, de alimentação, que possam dormir no escuro e ter a melhor vida que puderem. Muito diferente da triste vida de galinhas comerciais, que vivem em gaiolas, sem paz, sem descanso adequado, que muitas vezes são torturadas, levando uma vida sem dignidade e respeito. Infelizmente, a maioria das galinhas do mundo tem uma vida muito triste, mesmo sendo um bicho tão generoso, que nos fornece tanto – já parou pra pensar o tanto de pratos e preparos que levam ovos? Estão na base de qualquer cultura gastronômica! Os ovos são tão importantes para gente, e nós, como agradecemos as galinhas? Enquanto elas nos dão tanto, lhes damos de volta abusos, desequilíbrios e vidas muito tristes.
Devemos muitas desculpas às galinhas, e às tantas outras espécies que escravizamos – que não são só galinhas. Por interesses gastronômicos e econômicos ainda escravizamos seres da nossa própria espécie – você já estudou de onde vem o cacau das marcas de chocolate que você consome? A história de muitas crianças escravizadas na África fazem parte dele, por exemplo. Comer é maravilhoso, o sabor do mundo é, mas infelizmente há muito sofrimento no meio desse prazer. Não precisava ser assim. A natureza é perfeita, brilhante e generosa, mas nós não somos nem um pouco isso em troca com ela. Recebemos tanto, mas estamos tão acostumados a extrair, abusar, desequilibrar. Por isso falo tanto de gratidão, por isso gratidão é tão importante, ela nos move a pensar sobre escolher melhor, respeitar, ser generoso, mudar – o que é uma dura tarefa. Mas existe um caminho. Precisamos pensar, com lucidez e gratidão, sobre as galinhas, sobre nós, sobre de onde vem as coisas e quais histórias ajudamos a manter e construir.
Os ovos na prateleira dos mercados, as carnes, as plantas, os chocolates – tudo vem de um lugar e tem uma história para chegar até nós. Quantos animais vivem (e morrem) para que tenhamos todos esses alimentos? Não dá pra contar. Li recentemente um artigo sobre a vida de galinhas comerciais, li mais algumas coisas, assisti alguns documentários de pessoas sérias e preocupadas. Pensei na importância de termos consciência da origem dos ingredientes, para assim termos condições e elementos para refletir, nos emocionar e escolher melhor o que comemos. Que história ajudamos a manter com nossa escolha? Que história queremos “comer” e ser parte? Sônia T. Felipe, escreve um interessante artigo intitulado “O sono das galinhas”, nele ela se apega a esse aspecto de suas vidas para descrever a crueldade da criação comercial de galinhas. Segundo Sônia, as galinhas que podem viver livres e seguir seus ciclos naturais costumam passar 10 ou 12 horas por dia dormindo no escuro, no silêncio, descansando sua hipófise dos estímulos produzidos pelos raios solares e produzindo hormônios que descansem seu organismo. Já na cruel realidade do confinamento industrial, as galinhas são apenas máquinas de produção. A luz desses ambientes é mantida acesa 22 horas por dia – o que promove uma sobrecarga de ovulação (para produzirem mais ovos) – o que também é estimulado com intensidade pelas rações alteradas, alimento bem diferente do que elas escolheriam se fossem livres. Comem e vivem como máquinas, abastecidas para ovular, e ponto. Vivem empilhadas, sem espaço, sem sono, sem escuro, sem alimentação natural, sem silêncio, respiram um ar alterado que promove uma série de desequilíbrios em sua saúde. Em um ambiente tão desesperador elas acabam atingindo um nível estressor tão grande que se tornam canibais – daí, para evitar perdas, eles cortam e queimam seus bicos, sem anestesia e de maneira precária, causando dores que podem se estender por muito tempo. Muitas dores juntas. Uma vida triste e cruel que dura cerca de 4 anos, quando estão “gastas”, é hora de serem degoladas.
Pense em como é ficar apenas uma noite sem um descanso adequado, um dia sem um momento de tranquilidade ou alimentação boa. Pense em uma vida inteira assim. Bom, não dá nem pra pensar, não é? O “sono das galinhas” – a inexistência do sono, um direito e necessidade natural – é apenas uma das dignidades vetada a essa espécie que escravizamos, pois há diversas outras torturas que elas são expostas para chegar de diversas formas e ofertas às prateleiras dos supermercados.
As galinhas e de onde vem os ovos são apenas um exemplo, porque se fossemos falar em detalhes de toda escravidão que nós humanos submetemos tantas espécies – inclusive a nossa – seriam muitas, muitas páginas. Tristes páginas. Por vida digna, entende-se animais que possam viver livres seus ciclos naturais, ter paz – mesmo sendo de alguma forma servidores de nossos prazeres. É muito mais digno e respeitoso consumir o ovo da galinha enquanto oferecemos à ela ao menos uma vida boa, a melhor que possa ter. Há uma maneira mais digna de consumir produtos de origem animal, uma maneira equilibrada que respeite o todo, uma maneira mais ética (temos uma luz crescente hoje que é a produção orgânica de alimentos). Comer um animal (ou um derivado dele) de vida digna é diferente de comer um animal de vida triste, que não teve o melhor possível enquanto vivo. Aliás, animais esses que temos chamado de “proteínas” – odeio esse termo que desnaturaliza uma vida – são bichos! Esse termo talvez sirva para alimentar aquela alienação confortável, que nos mantém longe da ideia de que a carne vem de uma morte, de um bicho vivo, muitas vezes de um bicho triste de um sistema cruel – gostamos de nos esconder da verdade inconveniente. Se é proteína, e não um bichinho morto, tudo bem ir pra minha panela. Quer comer, coma encarando o que é de verdade. Coragem e coerência.
Há muitos trabalhos lúcidos ainda hoje que dignificam os animais que nos servem. Muitos cozinheiros e produtores tem semeado discursos e regras muito generosas. No sul dos Estados Unidos, churrasqueiros tradicionais mantém uma tradição de criar animais livres, com dignidade, lhes oferecendo a melhor vida possível e respeitando todo seu ciclo, inclusive no momento do abate, onde a morte do animal é quase um ritual muito sério feito com muito respeito. Os churrasqueiros mantém uma relação de conexão íntima com o animal em todo processo. É comum ainda o hábito de ao colocar um porco inteiro para ser assado eles darem “uns tapinhas” na traseira do animal, em um momento solene de silêncio que simboliza gratidão por ele se tornar um alimento para os homens. Em muitos lugares do mundo, muitos cozinheiros tem falado da importância também do modo como o animal é preparado, da forma mais impecável possível para que a carne fique excepcional e honre a vida do animal. Seguindo essa filosofia, desperdiçar ou errar um prato tem sido um crime em algumas cozinhas.
Eu consumo carne, não me vejo por hora em via de adotar um estilo de vida vegetariano ou vegano – apesar de estar comendo cada vez mais alimentos de origem vegetal. Mas há muitas formas de respeitar a natureza e o animal, mesmo o consumindo. Isso depende das aspirações, estilo de vida, opinião pessoal e escolhas de cada um. O que sei é que é diferente comer um animal de vida triste e comer um de vida digna, que foi respeitado e teve a melhor vida que pode ter antes de ser abatido. E outra coisa: os excessos. Você não precisa comer carne todo dia, não mesmo. O excesso de consumo é um dos maiores produtores da crueldade. Se a demanda diminui, menos crueldade será necessária para produzir em abundância um elemento de origem animal. O excesso de consumo cria necessidades comerciais que quebram ciclos naturais, pois o tempo da natureza é lento para a velocidade do nosso desejo de consumo. Você pode comer muitas plantas (que uma natureza tão generosa também oferece) e não ter animais no seu prato todo dia. Criatividade, inovação e quebra de costumes, difícil, mas lindo e revolucionário. Acho que o equilíbrio é um grande segredo. Nossa escolha de alimento é o que gera a demanda de produção industrial – começa na gente, nas escolhas do dia a dia na prateleira do supermercado.
Bom, meus caros, é dessa história toda (e mais algumas outras) que vem nossos ovos. Não falei aqui sobre os danos à nossa saúde que esse processo de criação industrial traz – acreditem, ainda tem isso. Mas é papo para outro momento. Sobre as galinhas, sinto uma vergonha em pensar que eu também sou parte dessa tortura para com elas. Talvez eu não queira mais ser, terei que ter um grande trabalho emocional, cultural e habitual. Mas vale a pena. Tem algo que pode ser feito – essa vergonha pode ser o inicio de um impulso a mudança. Eu posso começar, por exemplo, escolhendo ovos de galinhas de vida digna, indo atrás de outras possibilidades. É um começo. Outro dia um primo querido, muito lúcido e inspirador sobre esse tema, escreveu algo que me emocionou – ele usou um termo: célula revolucionária. Uma célula é algo pequeno diante de um organismo inteiro. Mas transformações importantes que dominam algo maior começam em células. Tentemos ser células revolucionárias, então.
Vivemos em um mundo incrível, generoso e que nos oferta muito. Mas ele está muito gasto, nós estamos, nossa relação com a natureza está completamente bizarra e gasta. Todo mundo sabe disso. Nem todo mundo. Talvez por isso valha a pena escrever o que estou escrevendo, se uma pessoa ler isso já terá valido a pena. Se uma pessoa pensar em escolher ovos de galinhas de vida digna já terá valido a pena. A consciência de algo é o primeiro passo da possibilidade de transformação desse algo. Esqueçam as fontes de proteínas, pensem nos bichos. Lembrem das galinhas ao escolher os ovos, lembrem das crianças escravizadas na África ao escolher os chocolates. Há uma sensação maravilhosa que nos invade quando temos um ato de harmonia e respeito com o mundo – porque nós também somos o mundo. Eu quero sentir isso muitas, muitas outras vezes. Por mais que haja ainda em mim tantos hábitos de consumo que venham de alguma escravidão e crueldade, eu quero começar por algum lugar. É assim que é possível, real. Tem um caminho, um sentido. Vivo falando do quanto encontramos coisas muito importantes no ato de cozinhar – a cozinha nos conecta à tanta história, emoção, ética, origem, cultura e relação, é uma excelente porta para começarmos a repensar algumas escolhas de consumo, algumas posturas éticas que temos deixado de lado há muito tempo. A consciência é o maior ato de liberdade. Saiba do que você faz parte, reescolha.
Referências bibliográficas: Felipe, T. Sônia – O sono das galinhas, publicado no site da Agência de Notícias de Direitos Animais, 2011.
Carosella, Paola. Todas as Sextas/ textos Paola Carosella; fotografias Jason Lowe – São Paulo: Editora Melhoramentos, 2016.