Um café da manhã de domingo e o valor da lentidão

Demorou um tempo pra eu conseguir gostar de domingos, no passado eram dias de finais complexos. Depois de anos fui, artesanalmente, transformando eles em lentidão – um dia onde tento que o tempo caminhe e não passe rápido demais sem que eu consiga olhar ele de frente.

No café da manhã de domingo é onde mais tento essa relação gentil com meu tempo – vários preparos, detalhes, nada tão rápido nem nada tão prático – as receitas que ficam prontas em 5 minutos e são consumidas em mais apenas 5 não são para hoje. E mesmo que a receita seja simples (como foi a tapioca e o creme de abacate de hoje) eu demoro mais de propósito. Eu paro pra escolher músicas, às vezes pra dançar, às vezes pra olhar a janela da lavanderia um tempo, pra passar a mão no meu cachorro, pra ajeitar meu vaso de flores, pra tentar registrar meu tempo sem que ele escorra pelas minhas mãos nessa modernidade líquida.

Como qualquer metropolitano sobrecarregado, mesmo nos domingos onde fico tentando sentir o sabor sagrado da lentidão, a pressa e os cálculos das demandas de segunda-feira me atravessam, às vezes cortando com faca cega o tecido do meu tempo calmo – mas aí eu vou tentando voltar, porque afinal de contas, eu esqueço às vezes, mas uma coisa eu aprendi: não adianta muita coisa estar vivo para correr/produzir/calcular/entregar se eu não puder de vez em quando olhar em paz pra minha toalha listrada de mesa e perceber o quanto eu gosto dela, notar que amo deitar no chão da cozinha pro meu cachorro subir em mim, sentir o gosto na boca e lembrar que banana e queijo na tapioca nunca perderá o encanto, ter tempo de pensar que a textura de um creme de abacate é uma obra prima da natureza, que a pitaya é uma coisa misteriosa e bonita demais, que o papo furado das manhãs de domingo com o grande amor da minha vida são a coisa mais aconchegante dos meus dias. Espero que eu possa, na maioria das vezes, me lembrar do que Antônio Candido disse:

“Dizem que tempo é dinheiro, mas isso é uma monstruosidade. O tempo é o tecido de nossas vidas”.

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Ostara, Easter, Páscoa – Porque coelhos e ovos de chocolate? Confira origem da tradição e ainda seleção de 12 receitas sensacionais para sua páscoa!

Ostara

Imagem: Site Santuário Lunar

Ostara, Easter, Páscoa. O termo “Páscoa”, vem de “Ostara”, deusa escandinava da primavera – estação do ano que no hemisfério norte se inicia próxima à celebração da Páscoa. Antes mesmo do cristianismo, o dia de Ostara era a celebração do primeiro dia de primavera, do fim do inverno e retorno do sol, do florescimento e renascimento da natureza – o cristianismo uniu essa simbologia de “renascimento da natureza” a ressurreição de Jesus, fato hoje que universalmente simboliza a páscoa. Na antiguidade, o povo anglo-saxão pintava ovos e os oferecia a Ostara, sendo que o ovo sempre simbolizou vida, nascimento, assim como o coelho também era relacionado a Ostara, simbolizando fertilidade e fecundidade na natureza. Daí vem a origem dos ovos e do coelho da páscoa, que eram muito antes os “ovos e coelhos de Ostara”. O tempo transformou os ovos de Ostara em ovos de chocolate, criando uma intima relação desse ingrediente com toda a simbologia que envolve a Páscoa, os ovos, o coelho, a primavera e o renascimento. Por isso Páscoa tem tom de chocolate (do qual os ovos de Ostara deliciosamente acabaram sendo feitos) – a gastronomia tem sempre símbolos e marcas que contam a história da humanidade. Isso é sempre emocionante.

Para celebrar toda a simbologia da Páscoa com, claro, chocolate, fiz uma seleção de nossas melhores receitas que envolvem chocolate! Chocolate também é renascimento, é símbolo, e é maravilhoso… Veja abaixo a seleção com todo amor do mundo:

Para acessar as receitas basta clicar no link!

Receita de Ovo de Páscoa de Colher sabor Oreo

Receita de Ovo de Páscoa de Colher Trufado de Laranja

Receita de Ovo de Páscoa de Colher de Brigadeiro Gourmet

Receita de Gâteau au Chocolat (Bolo de chocolate cremoso sem farinha)

Receita de biscoitos de manteiga de amendoim com recheio de chocolate

Receita da tradicional Mousse de Chocolate Francesa

Receita de Reine de Saba – O bolo de chocolate com amêndoas da Julia Child!

Bolo Lava de Chocolate (Moelleux au Chocolat)

Receita de tortinhas de chocolate com farofa crocante de caramelo

Receita de Cookies Double Chocolate

Receita de mousse de chocolate com cachaça e crocante de chocolate branco

Receita de Bolo Double Chocolate com Azeite de Oliva

Ostara winter

Ostara – Lavando o adormecimento da terra durante o inverno e trazendo o florescimento e renascimento da natureza.

Cuidados com a carne vermelha antes de cozinhá-la (Qual escolher, como e quando temperar e outros detalhes pré-cozimento). Mas antes, lembrar que a carne é um “bicho”. Respeito e coerência.

Quando nos aproximamos mais do que as coisas realmente são a tendência é respeitá-las mais. A minha relação com um pedaço de carne hoje em dia sempre começa pelo respeito – toda vez que toco uma carne, eu respiro fundo, penso, e agradeço. O bicho não é”um pedaço de proteína”. É um bicho. E se você quer comer um pedaço de carne com honestidade tem que lidar com isso. Fico um pouco bravo com o hábito de se referir à carne como “proteína”, é reduzir e mascarar demais. É um bicho gente, nada vai mudar isso. Se você entende isso e se responsabiliza pela sua escolha, você come carne de um jeito coerente, respeitoso. Quando eu lembro que é um bicho eu penso no modo como o bicho chega até mim, penso na origem da carne que compro (e escolher a origem certa pode mudar muita coisa). Quando lembro que a carne é um bicho penso com muita seriedade em como vou temperar, cozinhar e comer – todo processo se torna um ritual sagrado e antigo, que eu só construo com cuidado e respeito se lembro que estou cozinhando um animal – e isso é uma coisa séria, se for para fazer, que seja com respeito, coerência e dignidade. Por isso saber como tratar direito a carne é muito, muito importante.

Eu aprendi com minha família, com as minhas leituras e com a Paola Carosella a ter alguns cuidados e gentilezas na hora de lidar com uma carne, e quero compartilhar com vocês. Aqui vou me ater a dicas sobre carnes vermelhas, em especial: Miolo de acém, costelas, contrafilé, filé de costela (o famoso bife ancho ou entrecôte) ou outros cortes que tem gorduras em proporções semelhantes a desses. No geral essas dicas servem para outras carnes também (até peixes e aves), mas é legal sempre pensar se algum tipo de carne não exige cuidados mais específicos. Vamos lá:

A origem da carne: Eu sei que isso é muito difícil, mas é muito importante, e você precisa saber que é importante. De onde vem a carne que você compra? Se puder entrar em contato com a história da carne e saber como o produtor cria o “bicho”, é algo bem valioso e bonito da sua parte. Talvez você possa, a partir disso, escolher produtores que criem melhor que outros. Isso , além de bonito, também te dá mais tranquilidade e confiança no que você coloca na mesa para sua família comer.

Não comprar carne congelada ou congelar a carne que você comprou. Quando a carne é congelada as fibras se alteram e muita coisa se perde – por exemplo, a capacidade da carne de reter suco e ficar suculenta e incrível (perceba que carnes que foram congeladas tendem a ficar secas após cozidas). Compre fresca e faça fresca.

Temperar com antecedência. Tem muitas teorias sobre isso e cada uma tem seu ponto de vista coerente, porém aprendi isso com gente que respeito muito (minha mãe e Paola Carosella) e também testei muito, e conclui que temperar a maioria das carnes com antecedência não ressaca a carne (como muitos acham) e confere à ela uma complexidade de sabor diferente. O tempo de antecedência para temperar depende da carne, mas carne de boi no geral tempero com 12 /24 horas de antecedência, sempre deu certo.

Temperar com o que e quanto de sal? A quantidade de sal depende de cada carne e dos hábitos de cada um. A Paola Carosella no livro “Todas as sextas” indica uma colher de sobremesa cheia para cada quilo de carne. Tenho usado essa proporção e tem dado muito certo. Gosto muito de temperar carnes vermelhas com um grande mix de ervas verdes frescas e azeite de oliva extravirgem. Faço uma mistura com o que tenho e gosto de ervas, azeite, o sal e pimenta. Que tempero pôr é muito particular às vezes. Seja lá o que escolher como erva e tempero, todos eles vão junto para ficar ali com a carne por longas horas, antes de cozinhar.

Preste atenção no tamanho dos pedaços de carne que você assa. É muito legal quando a carne tem uma proporção boa de crosta tostada por fora e interior rosado por dentro – uma peça muito grande assada de uma vez gera muito miolo rosado e pouca crosta. Fracione, é interessante, você terá mais equilíbrio e todos que comerem com você terão partes tostadas e partes suculentas do interior. O tamanho da peça de carne faz bastante diferença.

Preste atenção na temperatura em que a carne está na hora de cozinhar ela. Quando você leva ao forno, panela ou grelha uma carne gelada, há um desequilíbrio no tempo que o exterior e interior dela vão cozinhar, normalmente queima por fora e não atinge o ponto certo dentro. Sempre é legal tirar a carne da geladeira umas 2 ou 3 horas antes de assar para ela atingir temperatura ambiente, dá mais certo e o cozimento é mais simples e correto.

No geral, essas são regras primordiais no trato inicial de uma carne. Pensar qual comprar, em que estado comprar, em que tamanho cortá-la, como e quando temperar temperar e em que estado deixá-la até o momento de cozinhar. Depois disso vem o cozimento, que será feito de acordo com a receita que você irá seguir. Mas essa preparação e cuidado antes do cozimento faz bastante diferença, eu acredito muito.

Em breve vou compartilhar uma receita de carne assada – de um jeito simples e muito grandioso ao mesmo tempo, é de emocionar.

Agradeça o bicho. E não esqueça – a carne é um bicho.

O que você faz acontecer quando você compra de pequenos produtores? Uma memória afetiva da minha infância. 

Durante minha infância, minha mãe sempre fez doces para vender. Esse era um trabalho que nos ajudava muito. Em uma páscoa, quando eu tinha 12 anos, fizemos ovos. Era minha mãe, uma tia e eu, imersos no chocolate, horas e horas fazendo ovos, trufas, bombons e pirulitos. Tivemos mais encomendas do que imaginávamos e ficamos tão felizes – elas trabalhavam muito e muito alegres, pra mim era mágico estar ali, todo aquele trabalho era feito com uma energia profunda, cada pedido importava muito pra gente. Quando entregávamos cada encomenda era com um orgulho gigante, era nossa obra, feita pelas nossas mãos. Naquela páscoa o dinheiro das vendas foi muito importante pra nós. Por conta da ajuda que dei, minha mãe e minha tia me deram um valor – eu fiquei tão feliz, lembro que fui em uma livraria e comprei 3 livros que me fizeram companhia por alguns meses, foi bem especial. Estou falando tudo isso para você entender o que é comprar de pequenos produtores – seu dinheiro promove esse tipo de coisa e incentiva algo muito valioso. Fora que comer o que é feito por pessoas e não por máquinas é sempre outra coisa. Nessa foto eu estou em casa, fazendo “à mão” meus chocolates para presentear quem amo. Vou compartilhar algumas receitas com vocês, mas caso não possam fazer seus próprios ovos, pensem bem onde vocês irão comprá-los. Vou também compartilhar no Instagram essa semana o trabalho de alguns produtores pequenos que conheci, trabalhos  de gente que faz com afeto e verdade o que faz. Enfim. O consumo nessas épocas e o dinheiro que a gente gasta pode alimentar coisas bem boas. Pense bem antes de comprar, pense. Logo logo dicas para uma páscoa artesanal, humana e afetiva.

Cozinhei as 94 receitas do livro “Todas as sextas”, de Paola Carosella. Finalização do projeto “Gratidão de todas as sextas”.

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Finalizei o projeto “Gratidão de todas as sextas”. Cozinhei as 94 receitas do livro “Todas as sextas”, de Paola Carosella. Me comprometi, no dia 11/11/2016 (clique aqui e veja como tudo começou) a cozinhar todas as receitas e ir postando (no meu blog e Instagram) toda sexta-feira o resultado daquilo que foi feito na semana, e assim foi.  Estou aqui pensando em como, em um texto de finalização, significar e registrar tudo que esse projeto foi, daí me ocorre que faz sentido começar esse texto falando do fim do projeto, da receita 94/94: O Pão Arturito – Eu levei 15 dias e 17 horas para fazer essa receita (o pão, em muitos sentidos, é o senhor do tempo), e quando acabei consegui firmemente compreender a maior lição do livro: O valor do tempo. É isso. É sobre isso que o livro é: Tempo, vida e cozinha – porque foi uma COZINHEIRA (em caps, para ser verossímel) que escreveu sobre tempo e vida, e ela fez isso através da cozinha.

O livro “Todas as sextas” é o primeiro livro de Paola Carosella. Ele é composto de um relato autobiográfico profundo e de 94 receitas – cada uma delas trazendo uma reflexão e uma conexão com a história da cozinheira. Não é um livro culinário qualquer.  As receitas nos fazem questionar nossas escolhas e hábitos, nos incomodam e nos movimentam. Para prepará-las tudo começava com a busca pelos ingredientes,  e essa era uma etapa muito séria, porque Paola no livro é convicta ao falar da importância dos ingredientes – tinham que ser ovos de galinha de vida digna, carnes de animais que também tiveram vidas dignas, frutas e legumes plantados e cuidados por pessoas que fazem do jeito honesto o que fazem, farinhas vendidas por pessoas que tenham “olhos de pessoas do bem”, confiáveis – e eu não estava afim de contrariar as indicações, eu queria fazer direito para aprender de verdade o que estava ali sendo dito, então foram muitas caminhadas por São Paulo para encontrar os ingredientes certos. Após ter encontrado tudo para cada receita, na hora de cozinhar eu tinha que escolher uma panela que eu tivesse carinho (afeto importa), tinha que tratar os ingredientes respeitando seu tempo de descanso (alguns precisavam de 1 hora, outros de 24 horas, outros de 15 dias). Eu também tinha que entender o valor do fogo baixo e do tempo lento de cozimento, nada de pressa e pressão. Para servir o prato, tinha que ser também numa louça bonita – eu tinha que ser atencioso e gentil com a refeição, a cada instante – e comer tudo isso no final era quase sempre uma oração, uma recompensa e reflexão profunda do que implicava todo o processo – e do que ia sendo transformado em mim enquanto eu transformava ingredientes desse jeito.

Cozinhar desse jeito muda a gente, não tem como sair igualzinho. Para fazer tudo isso antes de qualquer coisa eu tive que “parar” – frear a velocidade desse mundo rápido e agressivo que vivemos para experimentar, através das receitas, uma outra experiência de tempo – um tempo lento, que corre diferente, que precisa respeitar o tempo dos processos naturais, um tempo que me fez pensar em como eu estava usando e experimentando o próprio tempo da minha existência. A verdade é que eu entendi mais do que nunca o quanto perdemos por causa da nossa pressa, da nossa incompreensão das coisas e do tempo que elas precisam levar para ficarem prontas. Cozinhando assim, eu tive então “tempo” de pensar na minha relação com a natureza quando escolhia ingredientes e quando os tratava de determinado modo, tive tempo de compreender o que de bonito acontece quando esperamos, tive tempo de me acalmar depois de dias complicados enquanto estava ali, cortando uma cebola, por exemplo.  Tive tempo de pensar no quanto minhas escolhas impactam o mundo que eu habito. Tive tempo de pensar nos meus afetos e elaborá-los, enquanto construía uma refeição com minhas mãos. Tive tempo, inclusive, de me lembrar do quanto a cozinha é simbólica na minha vida e é, há tantos anos, o meu divã – lugar onde eu sempre pude me encontrar em paz comigo mesmo.

O livro fala muitas vezes da importância de fazer artesanalmente – com as nossas mãos – aquilo que vamos comer. Eu acredito de verdade que existe uma via terapêutica em fazer artesanalmente algo que normalmente compramos pronto no mercado. É uma via que te permite autonomia e apropriação de um processo que normalmente você deixa que façam por você. Isso também é transformador, existe uma auto-realização grande em terminar uma refeição e falar no final: Eu que fiz, cada detalhe, do inicio ao fim, eu construí e transformei isso, estou implicado na coisa. A gente registra no nosso psiquismo coisas muito importantes quando nos vemos implicados nas coisas.

Fazer as receitas do modo como Paola conta também me permitiu pensar em tantos aspectos sociais, no modo como temos tratado o mundo e como temos nos relacionado com as pessoas. Quando escolho comprar de um pequeno produtor o que meu dinheiro incentiva? Quando escolho alimentos orgânicos o que ajudo a manter com meu ato? Há muito a se pensar, comer é um ato político e nossas escolhas conduzem o lugar social das coisas. Temos mais poder do que pensamos. O livro “Todas as sextas” também é um alerta, sutil e gentil, mas um alerta.

Quando comecei o projeto, estava envolvido por um sentimento muito forte de gratidão. Ao ler o inicio do livro, que é composto de um relato autobiográfico de Paola, muitas coisas na minha história foram tocadas. O mais legal de admirar pessoas é em algum momento notar o que essas pessoas que admiramos podem nos revelar de nós a nós mesmos – se conduzirmos de uma forma boa, admirar alguém é algo que revela algo muito importante sobre nós,  algo que muitas vezes não reconhecemos como nosso, mas que é. O outro ajuda a gente a notar. No meio desse insight e gratidão por Paola ter feito uma obra tão generosa e honesta, eu quis cozinhar o livro inteiro. Era para agradecer, para aprender, para ter um propósito novo. Hoje sei que era mesmo preciso cozinhar o livro todo, porque era preciso que eu me encontrasse com tudo isso. Me sinto mais convicto em relação ao modo como escrevo, com cozinho e até como faço meu trabalho como psicólogo – pude pensar em tudo que a cozinha, de um jeito metafórico e profundo, me faz pensar – porque quando a gente entende melhor o valor do tempo, tudo muda.

O projeto “Gratidão de todas as sextas” nasceu de um encontro – do meu com o livro. Mas ele gerou muitos outros encontros. Através do meu Instagram, milhares de pessoas acompanharam as postagens e compartilharam comigo o que sentiam com elas. A troca de narrativas que o projeto gerou e o alcance que ele teve me surpreendeu e me emocionou muito. Então tudo começou a ser algo maior e com mais sentido, onde quem ia acompanhando ia se transformando junto comigo, repensando sua relação com a comida e com o tempo. O projeto foi feito de encontros que deixaram muitas marcas. Pensar nisso me emociona muito, vai pra sempre emocionar.

Existe sim uma semelhança nesse projeto com o que Julie Powell fez com o livro de receitas de Julia Child – Vemos essa história no livro e filme Julie & Julia, que conta como Julie decidiu cozinhar as 524 receitas do livro de Julia em 365 dias. Essa história também me inspira, porque assim como Julie eu também fui salvo de uma vida um pouco triste e sem cor quando decidi que precisava cozinhar e escrever (quando o blog nasceu, aliás). Mas aqui, Paola foi minha Julia e “Todas as sextas” foi meu “Mastering the Art of French Cooking”.

Enfim, é isso. Acabou as 94. Algumas acertei muito que pulei de emoção, outras errei bastante. Todas me ensinaram muito. Eu tenho tanta coisa ainda pra dizer desse projeto, mas acho que isso não se encerra nunca, não cabe num texto, cabe dentro de mim e da bagagem que levo agora. Eu tive sucesso no projeto – mas um conceito diferente de sucesso. No mundo onde tempo é dinheiro, sucesso tem a ver com velocidade, rapidez, lucro em menos tempo e etc – e esse tipo de “sucesso” pode ser um slogan aniquilador e vazio. O sucesso que eu tive no projeto veio da calma e do tempo que corre diferente, veio das caminhadas longas por São Paulo buscando ingredientes, veio das tardes calmas esperando a panela cozinhar durante horas, do tempo que eu tinha enquanto esperava perto da panela e podia pensar nas coisas da vida, veio da emoção de compartilhar, veio da alegria de sentar e comer na mesa todas as receitas com alguém que eu amava. O sucesso veio de parar, respirar fundo, fazer, depois apreciar, e guardar pra sempre. O nome dessa história é gratidão. Como em todos os dias em que cozinhei cada uma das receitas, hoje eu só queria agradecer.

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Olhando na categoria do blog chamada “Gratidão de todas as sextas” você encontra todas as postagens, de cada uma das receitas. No meu Instagram também (@rodrigo.vilasboas) tem tudo lá. Também é possível encontrar os posts na hashtag #gratidaodetodasassextas .

 

O que é plantar a sua comida? 

O alface crescendo na minha horta, no quintal de casa, que observo todo dia da janela do meu quarto. Poucas coisas são tão valiosas quanto ver seu alimento crescer, em uma terra honesta, limpa, que produz um alimento honesto, real e limpo. A terra da minha horta é simbólica, ela é cuidada e tem a marca de muitas mãos generosas e carinhosas – não cuido dela sozinho. Nessa terra está escrito o conhecimento e afeto que minha família tem por terra e mato, está nela nosso apego à natureza que pra gente é uma espécie de oração. Acreditamos no poder e amor infinido que vem da terra, acreditamos muito. A horta do meu quintal produz alimentos que compartilhamos, com familiares e vizinhos, não nos custa compartilhar e o coletivo é sempre gratificante e belo. Já pensou em ver sua comida crescer e acompanhar a engenhosidade emocionante da natureza no seu quintal? Ou já pensou em comprar comida com esse selo de qualidade (limpa, de terra e mãos honestas e amorosas)? Já pensou em fazer com seus vizinhos uma horta coletiva num cantinho qualquer? O que chamamos de alimento orgânico tem uma história muito importante e linda por trás. O que seu corpo recebe, o que vai para a mesa da sua família, os hábitos sociais e comunitários que você pode construir através da comida – muito está a seu alcance fazer e transformar. Repense, reescolha, produza diversas marcas boas enquanto se alimenta. Plantar o meu alface me traz uma refeição linda, viva e saudável, mas também me traz emoções bonitas, contatos com a natureza (e um maior respeito à ela), me traz a chance de compartilhar, me traz iluminação, me traz o Deus que acredito e vejo no natural do mundo (na terra…), me traz uma lição sobre o tempo das coisas e me faz pensar no que compõe minhas escolhas. Comer é um ato social e  psicológico, há muito dentro disso. Pensem. Sou tão grato ao pé de alface que cresce na terra do meu quintal e ajuda a crescer em mim hábitos bons, vivos, plenos. A fertilidade do bom. Da terra pra dentro de mim, de dentro de mim para os outros. Todos nós. Plante alguma coisa para comer alguma vez na vida.

Ovos de galinhas de vida digna. Qual impacto da sua escolha de ingredientes?

Galinhas de vida digna. Paola Carosella usa muito esse termo em seu livro “Todas as sextas”, nos convidando à refletir sobre a nossa escolha de ingredientes. Quanto mais penso sobre esse termo, mais o acho lindo, mais ele me emociona. Galinhas de vida digna são aquelas criadas soltas, em lugares bons, que tenham a chance de ter adequados ciclos de descanso,  de alimentação, que possam dormir no escuro e ter a melhor vida que puderem. Muito diferente da triste vida de galinhas comerciais, que vivem em gaiolas, sem paz, sem descanso adequado, que muitas vezes são torturadas, levando uma vida sem dignidade e respeito. Infelizmente, a maioria das galinhas do mundo tem uma vida muito triste, mesmo sendo um bicho tão generoso, que nos fornece tanto – já parou pra pensar o tanto de pratos e preparos que levam ovos? Estão na base de qualquer cultura gastronômica! Os ovos são tão importantes para gente, e nós, como agradecemos as galinhas? Enquanto elas nos dão tanto, lhes damos de volta abusos, desequilíbrios e vidas muito tristes.

Devemos muitas desculpas às galinhas, e às tantas outras espécies que escravizamos – que não são só galinhas. Por interesses gastronômicos e econômicos ainda escravizamos seres da nossa própria espécie – você já estudou de onde vem o cacau das marcas de chocolate que você consome? A história de muitas crianças escravizadas na África fazem parte dele, por exemplo. Comer é maravilhoso, o sabor do mundo é, mas infelizmente há muito sofrimento no meio desse prazer. Não precisava ser assim. A natureza é perfeita, brilhante e generosa, mas nós não somos nem um pouco isso em troca com ela. Recebemos tanto, mas estamos tão acostumados a extrair, abusar, desequilibrar. Por isso falo tanto de gratidão, por isso gratidão é tão importante, ela nos move a pensar sobre escolher melhor, respeitar,  ser generoso, mudar – o que é uma dura tarefa. Mas existe um caminho. Precisamos pensar, com lucidez e gratidão, sobre as galinhas, sobre nós, sobre de onde vem as coisas e quais histórias ajudamos a manter e construir.

Os ovos na prateleira dos mercados, as carnes, as plantas, os chocolates – tudo vem de um lugar e tem uma história para chegar até nós. Quantos animais vivem (e morrem) para que tenhamos todos esses alimentos? Não dá pra contar. Li recentemente um artigo sobre a vida de galinhas comerciais, li mais algumas coisas, assisti alguns documentários de pessoas sérias e preocupadas. Pensei na importância de termos consciência da origem dos ingredientes, para assim termos condições e elementos para refletir, nos emocionar e escolher melhor o que comemos. Que história ajudamos a manter com nossa escolha? Que história queremos “comer” e ser parte? Sônia T. Felipe, escreve um interessante artigo intitulado “O sono das galinhas”, nele ela se apega a esse aspecto de suas vidas para descrever a crueldade da criação comercial de galinhas. Segundo Sônia, as galinhas que podem viver livres e seguir seus ciclos naturais costumam passar 10 ou 12 horas por dia dormindo no escuro, no silêncio, descansando sua hipófise dos estímulos produzidos pelos raios solares e produzindo hormônios que descansem seu organismo. Já na cruel realidade do confinamento industrial, as galinhas são apenas máquinas de produção. A  luz desses ambientes é mantida acesa 22 horas por dia – o que promove uma sobrecarga de ovulação (para produzirem mais ovos) – o que também é estimulado com intensidade pelas rações alteradas, alimento bem diferente do que elas escolheriam se fossem livres. Comem e vivem como máquinas, abastecidas para ovular, e ponto. Vivem empilhadas, sem espaço, sem sono, sem escuro, sem alimentação natural, sem silêncio, respiram um ar alterado que promove uma série de desequilíbrios em sua saúde. Em um ambiente tão desesperador elas acabam atingindo um nível estressor tão grande que se tornam canibais – daí, para evitar perdas, eles cortam e queimam seus bicos, sem anestesia e de maneira precária, causando dores que podem se estender por muito tempo. Muitas dores juntas. Uma vida triste e cruel que dura cerca de 4 anos, quando estão “gastas”, é hora de serem degoladas.

Pense em como é ficar apenas uma noite sem um descanso adequado, um dia sem um momento de tranquilidade ou alimentação boa. Pense em uma vida inteira assim. Bom, não dá nem pra pensar, não é? O “sono das galinhas” – a inexistência do sono, um direito e necessidade natural – é apenas uma das dignidades vetada a essa espécie que escravizamos, pois há diversas outras torturas que elas são expostas para chegar de diversas formas e ofertas às prateleiras dos supermercados.

As galinhas e de onde vem os ovos são apenas um exemplo, porque se fossemos falar em detalhes de toda escravidão que nós humanos submetemos tantas espécies – inclusive a nossa – seriam muitas, muitas páginas. Tristes páginas. Por vida digna, entende-se animais que possam viver livres seus ciclos naturais, ter paz – mesmo sendo de alguma forma servidores de nossos prazeres. É muito mais digno e respeitoso consumir o ovo da galinha enquanto oferecemos à ela ao menos uma vida boa, a melhor que possa ter. Há uma maneira mais digna de consumir produtos de origem animal, uma maneira equilibrada que respeite o todo, uma maneira mais ética (temos uma luz crescente hoje que é a produção orgânica de alimentos). Comer um animal (ou um derivado dele) de vida digna é diferente de comer um animal de vida triste, que não teve o melhor possível enquanto vivo. Aliás, animais esses que temos chamado de “proteínas” – odeio esse termo que desnaturaliza uma vida – são bichos! Esse termo talvez sirva para alimentar aquela alienação confortável, que nos mantém longe da ideia de que a carne vem de uma morte, de um bicho vivo, muitas vezes de um bicho triste de um sistema cruel – gostamos de nos esconder da verdade inconveniente. Se é proteína, e não um bichinho morto, tudo bem ir pra minha panela. Quer comer, coma encarando o que é de verdade. Coragem e coerência.

Há muitos trabalhos lúcidos ainda hoje que dignificam os animais que nos servem. Muitos cozinheiros e produtores tem semeado discursos e regras muito generosas. No sul dos Estados Unidos, churrasqueiros tradicionais mantém uma tradição de criar animais livres, com dignidade, lhes oferecendo a melhor vida possível e respeitando todo seu ciclo, inclusive no momento do abate, onde a morte do animal é quase um ritual muito sério feito com muito respeito. Os churrasqueiros mantém uma relação de conexão íntima com o animal em todo processo. É comum ainda o hábito de ao colocar um porco inteiro para ser assado eles darem “uns tapinhas” na traseira do animal, em um momento solene de silêncio que simboliza gratidão por ele se tornar um alimento para os homens. Em muitos lugares do mundo, muitos cozinheiros tem falado da importância também do modo como o animal é preparado, da forma mais impecável possível para que a carne fique excepcional e honre a vida do animal. Seguindo essa filosofia, desperdiçar  ou errar um prato tem sido um crime em algumas cozinhas.

Eu consumo carne, não me vejo por hora em via de adotar um estilo de vida vegetariano ou vegano – apesar de estar comendo cada vez mais alimentos de origem vegetal. Mas há muitas formas de respeitar a natureza e o animal,  mesmo o consumindo. Isso depende das aspirações, estilo de vida, opinião pessoal e escolhas de cada um. O que sei é que é diferente comer um animal de vida triste e comer um de vida digna, que foi respeitado e teve a melhor vida que pode ter antes de ser abatido. E outra coisa: os excessos. Você não precisa comer carne todo dia, não mesmo. O excesso de consumo é um dos maiores produtores da crueldade. Se a demanda diminui, menos crueldade será necessária para produzir em abundância um elemento de origem animal. O excesso de consumo cria necessidades comerciais que quebram ciclos naturais, pois o tempo da natureza é lento para a velocidade do nosso desejo de consumo. Você pode comer muitas plantas (que uma natureza tão generosa também oferece) e não ter animais no seu prato todo dia. Criatividade, inovação e quebra de costumes, difícil, mas lindo e revolucionário. Acho que o equilíbrio é um grande segredo. Nossa escolha de alimento é o que gera a demanda de produção industrial –  começa na gente, nas escolhas do dia a dia na prateleira do supermercado.

Bom, meus caros, é dessa história toda (e mais algumas outras) que vem nossos ovos. Não falei aqui sobre os danos à nossa saúde que esse processo de criação industrial traz – acreditem, ainda tem isso. Mas é papo para outro momento. Sobre as galinhas, sinto uma vergonha em pensar que eu também sou parte dessa tortura para com elas. Talvez eu não queira mais ser, terei que ter um grande trabalho emocional, cultural e habitual. Mas vale a pena. Tem algo que pode ser feito – essa vergonha pode ser o inicio de um impulso a mudança. Eu posso começar, por exemplo, escolhendo ovos de galinhas de vida digna, indo atrás de outras possibilidades. É um começo. Outro dia um primo querido, muito lúcido e inspirador sobre esse tema, escreveu algo que me emocionou – ele usou um termo: célula revolucionária. Uma célula é algo pequeno diante de um organismo inteiro. Mas transformações importantes que dominam algo maior começam em células. Tentemos ser células revolucionárias, então.

Vivemos em um mundo incrível, generoso e que nos oferta muito. Mas ele está muito gasto, nós estamos, nossa relação com a natureza está completamente bizarra e gasta. Todo mundo sabe disso. Nem todo mundo. Talvez por isso valha a pena escrever o que estou escrevendo, se uma pessoa ler isso já terá valido a pena. Se uma pessoa pensar em escolher ovos de galinhas de vida digna já terá valido a pena. A consciência de algo é o primeiro passo da possibilidade de transformação desse algo. Esqueçam as fontes de proteínas, pensem nos bichos. Lembrem das galinhas ao escolher os ovos, lembrem das crianças escravizadas na África ao escolher os chocolates. Há uma sensação maravilhosa que nos invade quando temos um ato de harmonia e respeito com o mundo – porque nós também somos o mundo. Eu quero sentir isso muitas, muitas outras vezes. Por mais que haja ainda em mim tantos hábitos de consumo que venham de alguma escravidão e crueldade, eu quero começar por algum lugar. É assim que é possível, real. Tem um caminho, um sentido. Vivo falando do quanto encontramos coisas muito importantes no ato de cozinhar – a cozinha nos conecta à tanta história, emoção, ética, origem, cultura e relação, é uma excelente porta para começarmos a repensar algumas escolhas de consumo, algumas posturas éticas que temos deixado de lado há muito tempo. A consciência é o maior ato de liberdade. Saiba do que você faz parte, reescolha.

Referências bibliográficas: Felipe, T. Sônia – O sono das galinhas, publicado no site da Agência de Notícias de Direitos Animais, 2011.

Carosella, Paola. Todas as Sextas/ textos Paola Carosella; fotografias Jason Lowe – São Paulo: Editora Melhoramentos, 2016.