
Exposição “Miró – la experiencia de mirar” do Museo Nacional de Bellas Artes, em Buenos Aires.
Miró e minha comida, há um laço delicado que conecta essas duas coisas. A obra do artista espanhol Joan Miró sempre foi uma inspiração simbólica para muitas coisas ao longo da minha existência, seu traçado singelo, mas ao mesmo tempo brilhante e revelador, era um convite para que eu experimentasse o prazer simples e possível nos dias em que as alternativas de prazer não eram tantas. Na minha comida a marca dessa inspiração é também muito intensa, trazendo todo o traçado de Miró que é acessível, absolutamente simples mas promotor de uma experiência profunda. Vou explicar com calma um pouco do que vejo em Miró, e então ficará mais fácil entender o que dele existe na minha gastronomia.
A comida é a mensagem que o cozinheiro transmite. O cozinheiro interpreta sua época, seu espaço e também sua subjetividade e soma tudo isso, produzindo uma obra que conte um pouco de cada um desses elementos através de sua comida e do modo como ele a faz. A inspiração para a produção dessas obras que contam tanta coisa podem vir de muitos lugares, de muitos encontros, de muitas pessoas, de muitas histórias – as experiências e emoções que a vida nos apresenta vão sendo nosso repertório para criar nossas coisas. Toda criação conta alguma coisa da história e experiência do criador. Entre tantas fontes de inspiração para as criações da minha vida, as artes plásticas sempre tiveram um papel muito forte nisso, e Miró estava ali – estava ali em muitos momentos em que eu construía meu jeito de dizer como é o mundo que habita em mim e como vejo o mundo que habito. Acho que é gentil que eu fale um pouco do que sei de Miró, para então dizer o que tem dele na minha comida.
Joan Miró foi um artista surrealista espanhol (1893-1983), o mais impactante de sua obra é seu traço simples, puro, acessível, direto. Ele tentava retratar a natureza das coisas como faria um homem primitivo ou uma criança, que tivesse no entanto a habilidade narrativa e intelectual de um homem maduro de seu tempo – é uma linguagem simples que conta coisas fortes e intensas. As formas de Miró são simples, a colocação de suas cores também o são, mas o recado disso tudo é sempre forte, e esse recado forte chega até nós facilmente justamente pela simplicidade da composição de suas obras – não são trabalhos complexos postos em milhões de camadas que tornam trabalhoso nosso acesso as formas e as cores da obra, em Miró você olha e vê, e é aquilo, então extrai muito disso. Ele trazia uma visão despojada, intuitiva. Suas formas se transformavam em outras formas, criando ideias e elementos, como se um traço “parisse” o outro.
Tive a emocionante surpresa de encontrar uma exposição linda de Miró no Museo Nacional de Bellas Artes em Buenos Aires na última semana, e pude “mirar” de perto toda essa expressão. Pude reencontrar a emoção de outras horas, que eram ativadas conforme eu olhava e sentia cada traçado simples dele. Olhe as imagens do post (que fotografei na exposição) e tente facilmente ver as cores, as formas, e como elas são acessíveis e claras. E em seguida leia o próximo parágrafo.
Finalmente te conto o que tem de Miró na minha comida. Meus pratos, no geral, são simples e com traços claros – tenho gostado cada vez mais de entender a natureza orgânica de cada ingrediente e cozinhá-lo de um modo que deixe o que ele tem de maravilhoso evidente – a beleza de um ingrediente em sua simplicidade e verdade. Tenho visto o quanto é bonito não perder a identidade do ingrediente, intervindo nele (cozinhando ele) o suficiente para abrilhantar mais o que de mágico a natureza já fez. Também gosto de preparos complexos, não sou assim tão simples também, mas é emocionante, mesmo num preparo complexo, ainda ser possível enxergar no prato a assinatura oficial de tudo: a da natureza. Meus pratos tem preparos e apresentações simples que ressaltam a formas, as cores e sabores do ingredientes, sem tornar essa percepção muito impossível a quem come – quero que seja acessível uma experiência sensorial plena e de verdade, com comida clara, boa, e que te marque. Que seja simples, mas que seja incrível. Você pode notar isso checando a recente receita que compartilhei de “pão com ovo”. É valioso possibilitar que a emoção seja construída, captada e registrada na refeição, por mais simples que ela seja – e é aí que Miró está na minha comida: Assim como a obra de Miró, tento em traçados (preparos) simples proporcionar uma experiência intensa, que conecte afetivamente a pessoa a riqueza do singelo.
Durante a minha infância, cresci em um contexto que me convocou a descobrir o valor e o belo nas coisas simples, no que eu tinha disponível, e isso era um desafio muitas vezes, mas desenvolveu minha condição de ver brilho profundo no singelo. Sou profundamente grato pelas chances que tive.
Enfim, eu precisava falar hoje de Miró, estou muito feliz desse presente que foi encontrar a exposição e reencontrar essa verdade sobre mim e sobre o que tenho feito com minhas mãos. Hoje eu queria agradecer. Eu amo desde sempre ver, viver e sentir o prazer do simples, dos traçados singelos da vida, e na minha comida não seria diferente.
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Gosto muito dessa sua proposta – gastronomia e cultura. Parabéns, mais uma vez…
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